De Alice Ruiz
som alto
vento na varanda
a samambaia samba
quinta-feira, 2 de julho de 2015
quarta-feira, 1 de julho de 2015
No escuro
Perdeu o show da Tina Turner e a visão - tudo ao mesmo tempo agora. Tinha comprado ingresso, viajou mais de mil quilômetros, mas antes de ver a energia negra de pernas luminosas, e bem antes de ver o marido que a espancava depois de cheirar cordas de coca, antes ele foi visitar um amigo na casa do litoral. E foi aí que se perdeu. Talvez tenha sido a carga de adrenalina recebida num passeio de moto - e sem capacete, mas a verdade é que saiu da garupa e entrou numa garrafa de cachaça que o tirou do compasso do tempo. Depois derrubou outra e mais outra... quando acordou, sabe-se lá quanto tempo depois, não estava enxergando nada. Gritou que estava cego, mas ninguém o ouviu. Sozinho, não tinha noção do espaço onde estava. A canela bateu em algo e a dor foi lancinante. Foi tateando tudo e descobriu um quarto. Achou a porta e, ao girar a maçaneta, tomou um banho de estrelas no céu, ao mesmo tempo que sentia a brisa do mar. O coração disparou e a lembrança voltou, como a visão. Tina Turner, àquela altura, cantava Acid Queem num estádio de futebol muito distante. Ele sentou na areia da praia e chorou. De alegria e tristeza.
terça-feira, 30 de junho de 2015
palavras na mesa
De Roberto Prado
sombras
se esgueiram
entre vírgulas
separadas por tontas sílabas
que se espantam
nesta mesa, caros amigos,
como em tanta véspera
o que ainda me separa
de minha santa ceia?
entre vírgulas
separadas por tontas sílabas
que se espantam
nesta mesa, caros amigos,
como em tanta véspera
o que ainda me separa
de minha santa ceia?
O poço
O mistério do poço era o poço. E o balde. E a corda. E tudo desaparecendo naquele buraco. O menino olhava a mãe sair do casebre com a bacia de alumínio, deixá-la no chão, tirar aquela tampa de madeira, destravar a manivela e descer o balde cinza, de metal, cuja alça estava com a corda amarrada bem no meio - e que antes de desaparecer sempre balançava mesmo sem vento, sem nada. Depois tinha aquele barulho que mais tarde ele ouviu na voz de Luiz Gonzaga, mas no caso era a caneca entrando na água quando ele voltou ao nordeste e levou uma chamada de Januário. Tibung! Aí ele via a mãe com a mão esquerda segurando "os quartos", como ela dizia, e enrolando a carretilha grande, fazendo força, até aparecer o balde chorando. Ela o tirava na mira do buraco e depois despejava a água limpa na bacia, que levava pra dentro. Naquele dia o menino reparou que a mãe esqueceu de fechar a tampa do poço. Ele foi lá olhar. Se esticou até conseguir ver tudo - e era escuro, e parecia que um monstro iria sair dali e puxá-lo. Mas ele olhou direito e viu, lá embaixo, no fim do mundo, um pedaço do céu e algumas nuvens que estavam acima dele, pois olhou para verificar. E aí se viu naquele espelho. Era uma cabecinha de alfinete. Quis saber também se podia aparecer a mãozinha dando tchau. Apareceu. E as duas, daria? Deu. E aí foi sonho ou pesadelo porque sumiu tudo que o amparava. Lembra que escutou um grito. Depois, ainda tonto, um braço segurando seu corpo e ele subindo na corda até os olhos se ofuscarem com a luz do sol. Ouviu gente rindo, chorando, foi abraçado, beijado, tudo mais. Falaram em milagre e ele foi colocado na cama depois de tomar banho quente. Foi assim que o mistério do poço aumentou muito mais para ele.
segunda-feira, 29 de junho de 2015
Animal!
Queria ser famoso, celebridade, essas coisas de agora. Quinze anos. Entrou numa academia. Como era pobre de subúrbio da caixa prego, teve de ir para uma que se chamava Hércules. Os pesos estavam enferrujados. O dono tinha sido mister Carapicuíba em 1953. Estava entrevado e babava por um canto da boca. Mas os exercícios estavam lá. Ele puxou ferro durante três anos, cinco horas por dia - e ainda tomou umas bombas feitas para encorpar jegues a fim do abate para exportação de carne a países asiáticos. Um dia viu um cartaz escrito à mão num poste da vila. Teste para atores de novela. Ele foi. Tirou a roupa, mostrou o corpão dentro de uma cuequinha que comprou numa liquidação no supermercado, onde pagou R$ 6,60 por três e levou quatro. Disseram que foi aprovado e que no dia seguinte ele começaria as gravações. Estava lá. Era num quarto de motel vagabundo, tipo Iglu Inn. Tinha um cineasta com uma câmera na mão e uma mulher de 40 anos que só podia ficar com os braços esticados para cima para que mantivesse a altivez mamária. Ele encarou a missão. Recebeu elogio do diretor pelo desempenho. Da mulher, não - ela preferiu sair para fumar. Ele voltou para casa feliz. Lhe disseram que grandes atores de Hollywood começaram assim. Da Globo não conhecia nenhum, mas a emissora não deixa divulgar um treco desses. No dia seguinte tinha outro capítulo. Lhe informaram que ia ser sexo animal.
sexta-feira, 26 de junho de 2015
quinta-feira, 25 de junho de 2015
Sem nome
Ficou na dúvida se tinha ou não perdido a memória. Não completamente, mas para as coisas que vinham de repente - e nada. O nadador do filme "Enigma de uma vida", por exemplo. Foi assim que ficou preocupado. Lembrava dele atravessando várias piscinas dos vizinhos e também entrando no mundo das drogas por acaso, já velhinho, em "Atlantic City", ou ainda aquele beijo famoso na areia da praia em "A um passo da eternidade", ou, mais ainda, o caminhoneiro apaixonado por Anna Magnani em "A rosa Tatuada". Mas... cadê o nome? Não quis ir ao Google, apesar de saber entrar e se perder ali. Queria lembrar pelas próprias pernas, se é que elas têm a ver com isso. Os dias se passaram e ele ali com as cenas, o rosto, o corpo, o sorriso do ator na cabeça - e nada. Fez esforço para esquecer o esquecimento. Esqueceu. Mas aí vieram outros apagamentos, sempre com ator ou atriz da tela grande. Achou melhor procurar um médico. Foi. Este deu risada quando ouviu o drama. Disse que passava por isso também. Ele contou o primeiro caso. O doutor também conhecia todos os filmes daquele ator, mas não recordava o nome.
quarta-feira, 24 de junho de 2015
Filosofia
Achou a filosofia bem filha da puta. No bom sentido, se é que poderia ser classificada assim. A frase veio do nada, mas o fez pensar em quantos seres filhos da puta, no mau sentido, tinha conhecido em tantos anos de existência. Não, não tinha a ver com as mães dos tais, porque elas nunca merecem, mas com o caráter filho da puta dos crápulas que, do nada, demonstraram porque eram filhos da puta. Teve um que, do nada, foi pedir sua cabeça ao chefe do local onde trabalhava. Teve outro que ficou lhe devendo uma fortuna por trabalho feito e certa vez, ao ser cobrado, resmungou: "Você só pensa em dinheiro!" Cortou dos pensamentos as revelações dos descasamentos, porque estas eram clichês conhecidos em todas as Varas de Família. Lembrou de um amigo empresário de jogador que, no meio de uma madrugada, ao saber que sua estrela tinha caído com o carro dentro de um rio canalizado, e às vésperas de ser vendido por milhões, gritou: "Este filho da puta quer me foder!!" Não era o caso de caráter, apenas de bebedeira. Então ele se debruçou de novo sobre a frase que desencadeou tudo rapidinho, e repetiu em voz alta, olhando nos próprios olhos diante do espelho: "Ser filho da puta não é um ideal a ser alcançado. É, sim, uma grande filhadaputice".
querer
De Paulo Leminski
isso de querer
ser exatamente
aquilo que a gente é
ainda vai nos levar
além
isso de querer
ser exatamente
aquilo que a gente é
ainda vai nos levar
além
terça-feira, 23 de junho de 2015
Lembra
De Alice Ruiz
Lembra o tempo em que você sentia
e sentir era a forma mais sábia de saber
e você nem sabia?
Branca
Quando a endorfina bateu ele estava vendo um documentário sobre uma expedição ao K2 que deu merda. Morreram vários alpinistas e os que se salvaram pareciam ter pirado, além de perderem dedos dos pés e das mãos. Um dos guias virou capa da National Geographic, mas não quis falar sobre o que aconteceu. Andando e correndo há mais de duas horas na esteira, velocidade oito, ele ficou vendo aquela imensidão branca e as histórias de alguns heróis sobreviventes ficaram futucando a mente. Dois dias depois esqueceu tudo porque conheceu um grande homem, destes anônimos, que estão ali do lado, menino ainda atrapalhado com a turbulência da alma, perdido por um tempo na procura de algo que fizesse sentido, mas que só o afundou no mundo das drogas. Agora estava dando os primeiros passos depois de um longo tempo de internação, algo parecido como o do jogador Casagrande, até que numa noite, por estes encontros na encruzilhada da vida, alguém entrou trincado na cozinha de uma casa e jogou um pacote com algo branco e muito perigoso - e não era neve. Os olhos do menino se arregalaram. Ele viu as pupilas dilatadas do cheirado, olhou de novo aquele pó branco, sentiu dor imediata no estômago, relembrou os tempos em que se afundava nas carreiras e trafegava só no universo paralelo, temeu por não aguentar aquilo - mas saiu dali com o coração apertado e aos pulos. Ficou assim por um tempo, trancado no quarto e com uma sensação ruim e boa ao mesmo tempo. Até que falou com gente do seu time, gente que já tinha passado por isso e ali, no relato, recebeu dele a carga reveladora da força da vida que aconteceu no instante mágico da hora da decisão, aquela entre ir por um caminho ou pelo outro, já conhecido e sofrido. E o menino soube então que tinha conseguido chegar ao ponto fundamental de ter o domínio para a escolha.
segunda-feira, 22 de junho de 2015
Necessidade de morrer
De Miguel Sanches Neto
Morrer de vez em quando
em muito melhora
a qualidade de nossa obra
Morrer de vez em quando
em muito melhora
a qualidade de nossa obra
O bichinho
Entrou no consultório do oncologista como se estivesse adentrando a sala de cinema para ver um filme musical dos velhos tempos. Ouviu toda a explicação do doutor sobre os perigos do câncer na próstata - e a dele estava dando todos os sinais de ter o bichinho do ham-ham, como ele costumava brincar. O médico disse que o perigo são os tipos mais agressivos, que em seis meses saem do casulo - e aí é só resta encomendar o caixão. Ele riu. Em caso de detecção a tempo, dá para fazer tratamento com raios que o partam ou cirurgia para extirpação. Nos dois casos perde-se um pouco a virilidade. Ele riu mais ainda. O especialista contou então que todos os homens que sentam naquela cadeira sempre ficam apavorados - e perguntou por que ele não. Durante 40 anos, explicou o paciente, flertou com a morte sem saber - e conseguiu sobreviver. Não tinha medo porque estava diante de um doutor que aparentava saber tudo e explicava de forma simples e direta, ao contrário dos candidatos a deus que encontrou na vida. No caso da virilidade, ele disse que, se ficasse totalmente brocha, não se incomodaria pois há muito tempo não funcionava. Nessa o homem de jaleco branco também riu. Depois de todos os exames feitos, inclusive com biópsia sofisticada, comprovou-se que o bichinho ainda não tinha aparecido. Mas ele estava preparado para a chegada. Rindo.
sexta-feira, 19 de junho de 2015
quinta-feira, 18 de junho de 2015
Do limbo
quarta-feira, 17 de junho de 2015
Gestos
Esticado no sofá ele olhou para os pés e descobriu, depois de velho, que fazia a mesma coisa que o pai. O pé direito passava por cima do esquerdo e nele se apoiava. Ficou ali olhando enquanto a televisão emitia sons sem interesse e a luz azulada iluminava a sala - e os pés. Estava descalço e, pimba, olha lá os pés do pai, dedos compridos como os das mãos... Os das mãos? Olhou com as costas voltadas para o rosto, mas a uma certa distância. Então lembrou que também sempre repetiu outro gesto - o de passar a mão direita na cabeça, a partir da testa até chegar à nuca e ficar ali por um tempo, normalmente quando sentado à mesa e num sinal claro que não estava contente com a vida. Não, ele nunca esteve de bem com a vida e era calado, e balançava a cabeça negativamente sem dizer nada quando se deparava com coisas que achava erradas - e elas eram muitas, principalmente a própria existência. Mas isso nem ele nem o pai sabiam direito. Descruzou então os pés, olhou a tela de tv e viu uma bunda rebolando até perto do chão. O pai tinha razão.
terça-feira, 16 de junho de 2015
A última paçoca
Quem comeu a última paçoca? O grito foi ouvido até do outro lado da rua. Gutural, como se dizia no tempo do Underground, ou seja, quando Tião Macalé tinha dentes. Ele tinha escondido a última no fundo da gaveta onde jogava todos os cartões de visita e contas pagas. Viciado era - mas duro também. Comprava de caixa, naquelas lojas onde se vende doces de pacoteira para bares da periferia ou aniversário de pobre. Comia uma por dia, sagradamente. Quem comeu a última paçoca?, berrou de novo. O grito bateu nas paredes e só não voltou porque ele saiu da minúscula cozinha, onde tinha revirado tudo, e partiu para procurar no quarto e até no banheiro. Nada. Ele então se jogou no sofá que tinha uma lençol em cima para cobrir as marcas do tempo e ficou olhando para o teto e para o nada ao mesmo tempo. Sentiu de novo o gosto dela na garganta, mas não quis gritar mais. Foi então que lembrou que morava sozinho - e que a última paçoca ele mesmo tinha comido no dia anterior, logo depois da penúltima.
segunda-feira, 15 de junho de 2015
Meu tio
Eu tenho um tio que poderia ter sido campeão mundial de boxe. Ele continua sendo um bloco monolítico de ossos e músculos com uma cabeça grande, pescoço curto, e uma força que derrubaria Rocky Marciano e aguentaria todo tipo de pancada. Ele não sabe disso. Trabalhou no batente pesado como quem vende algodão doce para crianças. Fez isso a vida toda, nunca reclamou, nunca foi visto triste, adorava caminhões e se sentia um felizardo ao ser escalado para carregá-los de mercadorias pesadas e perigosas. Tomava uma cachaça por dia, depois do expediente. A cara que ele fazia, quando a mardita descia goela abaixo, era digna de um quadro do Lucien Freud. Meu tio se aposentou e disse que ia passar uns dias na casa de uma irmã que morava nos cafundós do país. Saiu de casa, filhos criados, e quase não voltou mais. Achou que deveria curtir a vida adoidado depois dos sessenta. Tomava marafa o dia todo, andava pelas ruas da pequena cidade feito um desvalido, ria à toa e dizem que andava com algumas raparigas. Um dia os filhos lhe imploraram para voltar. Ele retornou para a antiga casa. Sua cama continuava no quarto separado, porque durante muitos anos foi assim, desde que as crianças eram crianças e ninguém sabe porque aconteceu a separação sob aquele teto. Agora ele tem quase cem anos e cuida das plantas do jardim, de um cachorrinho que parece um chaveiro para ele. Não pode beber mais, mas continua uma fortaleza. Toda vez que lhe perguntam como está, diz que com a cabeça entre as orelhas e em cima do pescoço. Meu tio é um campeão.
Sem acerto
De Dalton Trevisan
Chorando baixinho, o velho disca todas as combinações possíveis. Mas não acerta o número da própria casa.
Chorando baixinho, o velho disca todas as combinações possíveis. Mas não acerta o número da própria casa.
sexta-feira, 12 de junho de 2015
quinta-feira, 11 de junho de 2015
Estômago
Ainda bem que ouvido não tem estômago. Ele leu aquilo e foi como se uma flecha com veneno tivesse atravessado seu cérebro. Pensou: como alguém consegue tal poder para nos desnortear? Foi o irmão que mandou na tela branca do computador. Assim, sem mais nem menos – e ficou em silêncio, sem explicação, que também não foi pedida. E se tivesse estômago, o que aconteceria? Ele pensou logo nas conversas de políticos, nos gritos dos militantes, na arrogância das ordens policiais, nos xingamentos entre desconhecidos no trânsito… Sim, pensou em coisas ruins, porque aí o ouvido poderia vomitar. Mas as declarações de amor fariam tão bem, alimentariam o estômago da alma. Êpa! O ouvido tem alma ou é da alma? Estava pensando em tudo isso quando lhe colocaram bem na frente o prato que pediu naquele restaurante caído: rabada com polenta e agrião.
quarta-feira, 10 de junho de 2015
A dor
Imaginou que a dor era a mesma causada por um tiro. Não houve impacto, ela apenas apareceu e, no terceiro dia, estava insuportável. Naquele pedaço do corpo parecia haver um bombeamento especial de sangue no local que mantinha o latejamento. Tentou remédio, bolsas gelada e fervente - nada fez efeito! Como poderia trabalhar sentindo aquilo? Tudo tinha desaparecido e sua mente estava concentrada ali, naquele canto da cabeça, como se o local quisesse provar que poderia dominar tudo. E dominava, da forma mais terrível possível. Não lembrava mais a última vez que sentira dor em algum dente. Pensou nisso também porque talvez fosse parecido. Ali, naquela cavidade, havia um bicho feio com os dentes cravados na cartilagem e balançando a cabeça como um cão raivoso depois de morder a presa. Apelou para uma reza no nicho cheio de santos. Em vão. Tentou lembrar o que poderia ter deflagrado tal situação. Aí lembrou não só do cotonete, mas do personagem do comediante Agildo Ribeiro que se transformava ao introduzir a haste com cabeça de algodão num dos ouvidos. Foi isso que ele fez, tentando a imitação para ele mesmo ver no espelho. Bem feito!
terça-feira, 9 de junho de 2015
Encontros
Eu vejo meus amigos por aí, quando menos espero. Eles aparecem até em forma de nuvens, como aconteceu naquela estrada onde até parei o carro no acostamento para matar saudade. Era o menino com quem trabalhei e aprendi a gostar porque ele fazia parte do meu universo como o ar que respiramos. Foi embora cedo, seis meses depois de aparecer a doença - e bem no dia em que andei de Maria Fumaça e viajei para o passado. Quando voltei ao presente recebi a notícia e chorei muito. O outro, um pouco mais velho, que encantou tempos depois por causa da mesma doença, vi outro dia descendo de um ônibus na rodoviária, enquanto esperava a filha. Ele passou bem pertinho de mim, tinha outro nome, outra história de vida, mas era aquele com quem dividi cultura e aprendi um pouco a escrever, mesmo porque sofríamos o mesmo tormento para começar um texto nas velha máquinas. Também o vi numa praça apinhada de gente num dia de sol escaldante - e ele olhou pra mim e esboçou um sorriso, tímido que era. Meus amigos aparecem, sinto saudade e também vontade de viver mais um pouco - até para novos encontros com Julio e Pedro.
segunda-feira, 8 de junho de 2015
imperativo da primavera
De Roberto Prado
humano, assuma o ar silvestre
época de amor conforme o calendário
flores façam tudo o que não digo
coração, aceite o eixo terrestre
ninho esta vida leve no bico
viva de brisa o papo sozinho
estações, aqueçam seu poeta
primaveras, passem com carinho
Olho seco
Olhou direto para o sol do meio-dia depois de ter ouvido centenas de vezes o disco de Egberto Gismonti com este nome. Surtou, cegou, mas não sentiu. A música tinha invadido o seu ser e o anestesiado para a dor. Nunca reclamou. Só pediu óculos escuros de aros redondos, feito um Lennon dos trópicos escaldantes. Lhe deram uma caneca de alumínio, daquelas que ainda ficam embaixo das torneirinhas dos filtros de barro do país desconhecido pela maioria dos habitantes. Foi então para uma esquina que ele conhecia desde criança, sentou e começou a emitir sons que dizia ser música - a do sol do meio-dia. Raramente ouvia o tilintar de uma moeda. Não ligava. Com o passar dos meses e anos se rebatizou como Cego Aderaldo, nome de música do mesmo Gismonti. Até o dia em que alguém duvidou da sua cegueira. A peixeira que carregava atravessada no cinto às costas surgiu feito raio. O sino da igreja tocou doze vezes. A lâmina brilhou e sangrou. Deus então matou. A polícia veio. Ele só disse uma frase: "Olho seco é mais embaixo".
quarta-feira, 3 de junho de 2015
Neblina
Chegou com os primeiros raios da luz do dia. A neblina cobria tudo. Estava perto da cidade, mas longe de tudo. Duas casas no fim de uma estradinha de terra pareciam cenário de filme de Bergman. Estacionou o carro, passou por entre as construções e seguiu uma pequena trilha em declive acentuado. Parou na beira de um lago - e não conseguia ver a outra margem. Respirou o ar frio da manhã e aquilo pareceu limpar toda a fuligem e o entulho da cidade grande e opressiva. Resolveu andar por aquela margem enquanto o sol, branco, tentava furar o branco da neblina. Estancou ao ver ancorado um barco simples de madeira que, cheio de água, mostrava apenas os contornos. Ele estava preso por uma corrente a uma estaca espetada num barranco. Ficou olhando aquilo como se fosse a tradução da imagem mais simples e encantadora que já tinha visto. Era muito mais do que aquele outro barquinho que encontrou numa vila do Rio Madeira, muitos anos atrás. Então, ouviu um chamado do dono da casa que acabara de acordar. Aí sentiu o cheiro do café que estava sendo coado.
terça-feira, 2 de junho de 2015
Asteriscos da salvação
Foi aquele sorriso que o salvou. E o rosto lindo abaixo de uma cabeça enrolada numa toalha branca. Ele viu no alto na banca de revista e, garoto, ficou ali admirado até com o formato do jornal, tabloide, coisa bem diferente do que conhecia - e apesar de um diário no tamanho tradicional jamais ter entrado em sua casa. Era pobre. Mais que pobre. Vivia naquele gueto onde a palavra cultura poderia ser confundida com palavrão. E da boca daquela mulher linda saía um balão, desses de história em quadrinhos, onde vários asteriscos apareciam entre as palavras. Palavras, não! Palavrões. Ele identificou e gamou - porque sempre gostou de falar. Foi em casa, pediu uns trocados para a mãe, voltou à banca, comprou o exemplar e entrou num mundo onde está até hoje, algumas décadas depois. Conheceu os personagens da República de Ipanema do Pasquim, aprendeu que era possível escrever simples para passar qualquer coisa adiante, e quando, por acaso, se profissionalizou mexendo com as letrinhas, foi daquele jeito que começou a tentar escrever - e a treinar diariamente. Quanto à deusa que o levou a sair daquela vila, inclusive fisicamente, será eternamente musa. Leila Diniz.
segunda-feira, 1 de junho de 2015
A lua e eu
A lua grudou o olho em mim. Fiquei olhando direto para ela na noite fria e me veio a ideia de que era mesmo um olho. Tão lindo e luminoso que foi feito para encantar. Encantar e distrair do resto do seu corpo, que é o universo do escuro da noite. Não, eu não vi estrelas nessa noite em que parei hipnotizado por ela – e como estava andando sem rumo pelas ruas da cidade vazia, de repente o olho da lua se postou acima de um cartaz onde um casal se beijava. Aí eu pensei na lua cantada pelos poetas enamorados, mas logo veio a imagem do lobisomem e fiquei temendo pela mocinha. Não aconteceu nada e também não vi São Jorge porque tinha esquecido os óculos “de longe”. Nessa noite esqueci que a luz da lua ela recebe do sol, porque ela é prata doce e seu raio banhando as águas do Rio Amazonas, no meio da floresta, foi algo que já vi mas não não dei tanta importância como agora. É que naquela noite há muitos anos minha alma estava nublada. Mesmo assim, ficou na retina e hoje, ao ver este olho na cidade grande, eu enxerguei de novo naquela imensidão de silêncio. E descobri que o corpo que envolve esta lua está aqui dentro – e sou eu e é você e somos nós, mas só os que conseguem vê-la.
domingo, 31 de maio de 2015
quinta-feira, 28 de maio de 2015
Solta o gás!
Não tinha nada de "Invasões Bárbaras", aquele filmaço. Aos 67 anos ele estava cansado da vida e, ao contrário do professor, nada de doença terminal. Viver era um saco para ele. Não via mais sentido em nada, mesmo porque tinha sido um inútil durante toda a existência, apesar de cumprir o script de estudar, se formar, ganhar dinheiro, casar, ter filhos, etc. Queria a eutanásia, mesmo estando com a saúde em dia, conforme os exames que fazia de seis em seis meses. Suicídio? Nem pensar. Não tinha coragem. Chamou os filhos, todos adultos, formados, casados, etc. A mulher deixou de fora, porque pensaria que ele tinha pirado e pediria o internamento imediato. Revelou o caso para os herdeiros, arrematou mostrando o testamento e a divisão da fortuna - imaginando que isso iria incentiva-los. O mais inteligente não só concordou como fez graça, dizendo que, longe dele, todos se reuniam para assistir "Parente é Serpente" e estudavam uma forma de mandá-lo para a caixa prego. Ele riu muito e perguntou, então, qual seria o melhor método. Estava descartada a hipótese da dose cavalar de morfina, mesmo porque ele odiava ser espetado. Alguém sugeriu gás. Ele gostou e lembrou da piada do português que foi condenado à morte e, ao entrar na câmara, notou que havia uma abertura lá em cima, a muitos metros de altura. Ficou sossegado porque o gás sairia por lá e, amarrado a uma cadeira, ouviu alguém gritar "solta o gás"; olhar para cima, então, viu dois gajos largando um botijão em sua direção. Todos caíram numa gargalhada sem fim. Quando a coisa passou, com lágrimas nos olhos, o velho disse para que esquecessem tudo - queria continuar vivendo.
quarta-feira, 27 de maio de 2015
Viagem
De Nelson Capucho
Vida veloz,
vida fugaz.
Um túnel à frente,
Um trem atrás.
Um trem-bala japonês.
Perseguição à Diamba
O Fusca passou no sentido contrário e deu para ver que os dois ocupantes fumavam um baseado. Maconha!! Os do Fusca do lado de cá arregalaram os olhos. Um deles colocou a mão na cintura, sentiu o 38 que surrupiara do pai e ordenou ao outro: vamos atrás para dar uma geral. A manobra a seguir foi arriscada, mas eles saíram em disparada. Na perseguição combinaram: dariam um susto, pegariam a mercadoria e, depois, na ampla sala da casa do que estava dirigindo, fumariam tranquilamente enquanto na vitrola mais uma vez o disco da vaca ou do prisma os levaria para a viagem sonora. Numa vacilada perderam de vista o carro perseguido. Frustrados, foram para a mansão e não ouviram disco nenhum, mesmo porque estavam sem bagulho algum para o ritual. Enquanto isso, não muito longe dali, no outro carro, os dois riam do que acontecera. Pelo retrovisor viram que estavam sendo perseguidos, mas a cara dos dois guris não inspirava receio. Acharam que não eram policiais - e se fossem, concordaram, o tiroteio ia ser cinematográfico. Estavam armados com duas calibre 12 de repetição entupidas de balas. Era preciso tal arsenal, afinal, a missão era proteger a carga de alguns quilos da diamba que tinham de entregar naquela noite.
terça-feira, 26 de maio de 2015
descascando cebola
De Roberto Prado
dentro do dentro
no meio do miolo
nas profundas do centro
do núcleo de tudo
é ali, no fundo, no fundo,
que habita você
minhalma doutro mundo
dentro do dentro
no meio do miolo
nas profundas do centro
do núcleo de tudo
é ali, no fundo, no fundo,
que habita você
minhalma doutro mundo
Um lugar escuro
Tinha um lugar escuro. E todas as crianças da turma da rua eram atraídos por ele. Ficava numa casa de fundos, meia-água, sem iluminação, insalubre. Nenhuma família parava ali. Teve os baianos, com cachorro e tudo. Teve os japoneses cujo patriarca tomava banho no ofurô no quintal. A casa, contudo, normalmente ficava vazia - e, por algum motivo, com a porta principal aberta. Todos morriam de medo, mas se sempre se juntavam e entravam, devagar, para verificar. Nunca havia nada, nenhum móvel deixado, apenas o piso de cimento cinza congelando a alma medrosa e quase nada de luz natural. O máximo era entrar até onde era o quarto, depois de subir três lances de degraus. O grupo sempre ficava pouco ali dentro e, invariavelmente, alguém gritava ter visto um fantasma. Então saíam na correria para a rua, para os terrenos baldios, para o mato que parecia floresta - e a vida se transformava numa brincadeira iluminada. Mas era preciso entrar naquela casa, porque ali era era lugar escuro.
segunda-feira, 25 de maio de 2015
Na minha a tua ferida
De Paulo Leminski
Essa é a vida
que eu quero, querida
encostar na minha
a tua ferida.
Uma lagosta para Bukowski
Ninguém sabe como aquela lagosta apareceu. Os três tinham bebido muito na noite anterior. Fizeram a famosa via sacra por vários bares da cidade - que terminou no boteco onde o trio sempre entrava torto e pedindo para o conjunto musical tocar Summertime. Quando acordaram na casa de um deles, mais amarrotados do que pobre no trem da Central do Brasil, viram o embrulho em cima da mesa. Dentro do jornal que anunciava mais um crime bárbaro na cidade, o bicho, inteiro, pálido, se é que lagosta fica assim - mas aquela estava sem cor, pálida. Se entreolharam e um deles disse que sabia preparar. Às onze da manhã de um dia normal da semana, derrubaram algumas doses de cachaça, para rebater, e o crustáceo foi para a panela cercado de batatas e cebolas boiando em água com muito sal. Cervejas foram compradas, um litro de conhaque de alcatrão de São João da Barra também. Tomaram tudo. A água secou, o bicho e os ingredientes torraram um pouco menos que o trio. Quase houve um incêndio na casa de madeira. Eles acordaram antes da tragédia e resolveram comer do jeito que estava. Um quase morreu engasgado. Dormiram de novo. No dia seguinte queriam ir a um restaurante para saber que gosto tem uma lagosta. Não foram por falta de numerário. Aquele era um tempo em que reverenciavam Henry Chinaski, famoso personagem e alter-ego de Charles Bukowski.
quinta-feira, 21 de maio de 2015
quarta-feira, 20 de maio de 2015
Pinóquio no psiquiatra
A sala de espera era toda escura. Uma mesinha de certo era branca, com um rinoceronte cor de rosa bem no meio. Ele sentou numa poltrona que imitava um ovo aberto, sentou e esperou, esperou. O psiquiatra demorou para abrir a porta do consultório. Antes o paciente foi até uma das cortinas, abriu e olhou para a noite, as luzes, e para baixo. Então encostou a cabeça no metal da janela. Gelou. Quis tirar a testa dali, mas não conseguiu. Ficou grudado com os olhos fixos na luz de um poste que ressaltava as pedras em preto e branco da calçada em frente a um prédio. Um carro parou, uma mulher desceu. Estava vestida de preto e usava chapéu. Elegante. Ela então se virou repentinamente e olhou para cima, para ele e sua testa grudada na janela. Ela sorriu e dali ele jura ter visto o rosto de Marlene Dietrich no filme O Expresso de Xangai. Houve acenos de ambas as partes. O psiquiatra abriu a porta e o chamou. Ele desgrudou e entrou. No consultório olhou, como sempre, a figura de um pinóquio que ali havia. Depois, sentou e começou a falar. Não sabia se estava contando verdade ou mentira. Por isso estava ali.
terça-feira, 19 de maio de 2015
Sem farda
Tirou a farda pela última vez e deixou-a em cima da cama. Foi tomar um banho frio, colocou um calção e voltou para o quarto da casa onde morava sozinho. Olhou a roupa que o acompanhou durante boa parte da vida. Nunca mais iria usá-la. Cumpriu seu tempo da forma mais honesta e sensata possível. Não havia nenhuma marca no cabo de seu revólver que pendurou no lugar de sempre. Jamais atirou em alguém, apesar de terem atirado nele - sem acertar. Também seguiu a hierarquia, mas sem baixar a cabeça ou deixar de falar o que achava correto ou errado aos oficiais. Foi um soldado. Agora não era mais. A farda tinha o destino da doação a algum companheiro de polícia. Ele então a dobrou, colocou num saco plástico para mandar lavar no dia seguinte. Deitou, olhou o teto, agradeceu a proteção recebida durante tantos anos. Estava vivo e feliz com a missão cumprida. Também tinha a resposta certa se alguém perguntasse se não teve medo de morrer vivendo tanto tempo tão perto do perigo. "Nunca encarei a morte. Finjo que não conheço".
segunda-feira, 18 de maio de 2015
Cicatriz
Um dia descobriram que ele tinha uma cicatriz bem feia na perna. Parecia ter sido mal costurada, aquele fio de pele branca estava esgarçado - e quem olhava bem tinha medo de que, num esforço maior, aquilo ia se abrir e mostrar as entranhas do corpo naquela parte. Havia fotos assim, que ele mostrava com gosto para provar como era feio a parte de dentro do ser humano. Para os que perguntavam sobre a tal marca, ele dava respostas diferentes, dependendo da plateia. O que mais gostava de dizer era que tinha sido ferido cobrindo a guerra do Vietnã junto com José Hamilton Ribeiro, que perdeu uma parte da perna e cada vez mais se mantém como o melhor repórter no país. Dizia o da cicatriz que tinha lhe sobrado apenas um estilhaço da mina. Para outros, contava a verdade, pois um tendão rompeu, por fadiga de material, como dizem os mais velhos, e tiveram de abrir, fazer um enxerto, remendar e costurar. Ele gostava de contar essas coisas. Quando chegava em casa, ficava olhando a marca, enorme, de quase 30 centímetros, e encarnava no pensamento e em cenas de filme de guerra a mentira sobre o que tinha acontecido na selva. Depois, num esforço, conseguia entrar no último helicóptero que partiu do teto da embaixada americana em Hanói, na fuga do Império diante dos vietcongs. Era parte da história. A parte derrotada, com o rabo entre as pernas. Mas ele estava lá. Ou não?
sábado, 16 de maio de 2015
quinta-feira, 14 de maio de 2015
Paço
A palavra entrou e ele estranhou. Paço. Foi ao pai dos burros: residência de rei, solar de família nobre, sede do governo do município… Na janela viu a vaquinha pele e osso comendo o resto da ração de palma enquanto o bezerro tentava sugar alguma coisa das tetas deka. Um carro de boi passou tocando melodia na estradinha. A poeira levantou, ele fechou a janela e ficou ali matutando se tinha visto um paço quando foi um dia na feira da cidade. Não lembrou, mas se agradeceu por ter aceitado um dia o dicionário todo estoporado, como dizia, de uma professora que achou ele interessado nas letras. Fechou a casa, caminhou até o asfalto, se enfiou numa caminhonete que fazia lotação e desembarcou duas horas depois na cidade encravada no pé de uma serra que tinha lá no topo um Cristo de braços abertos e cabeça desproporcional ao corpo. Perguntou onde era a prefeitura. Indicaram. Foi lá. O prédio, antigo, ficava numa praça modernosa e tinha um número em cima da porta de entrada. Foi construído antes de Lampião ter apavorado o povo daquela região. Quis entrar no paço mas foi barrado. Imaginou que era porque estava vestido do jeito de sempre, ou seja, com calça e camisa rasgadas e impregnadas de poeira. Tentou argumentar com o segurança, um bicho do mato vestido de farda e se valendo do trabuco na cintura. Desistiu diante da recusa veemente, mas antes de retornar para o casebre do sítio, pensou como um repentista e disse no ato para o matuto: “Passo o paço e não me passo”. O outro só arregalou os olhos eivados de pequenas veias vermelhas.
quarta-feira, 13 de maio de 2015
Gás
Se acostumou ao cheiro de gás de cozinha desde que era bebê. A mãe, solteira, tinha um péssimo olfato e o botijão, com vazamento, ficava dentro do barraco – e ele ali, inalando, de leve, mas inalando. Cresceu sem saber disso, até que um dia houve o gás tomou conta da casa do vizinho, gritaram para todo mundo correr porque havia o risco de explosão. Ele nem aí. Tranquilo, entrou na zona de perigo, conseguiu fazer o reparo na mangueira furada, saiu sem tontura, e foi aclamado como herói do pedaço. Gostou mais do odor que sentiu e a sensação de liberdade causada do que a bajulação do povaréu. Comprou então um pequeno botijão, sem a mãe saber, nele adaptou uma máscara de oxigênio, escondeu a engenhoca embaixo da cama, pois sabia que o chão de terra batida jamais seria limpado, e toda noite inalava sua dose no meio da madrugada. Sonhava acordado. Depois tinha pesadelo dormindo. Num deles acontecia a explosão. Foi assim que foi parar na manchete do jornal sanguinolento. Dele, da mãe e do barraco não sobrou quase nada. O que intrigou os bombeiros e peritos foi aquela máscara intacta que abrigava em seu interior, grudados, os lábios e os dentes de alguém que sorria.
terça-feira, 12 de maio de 2015
Variado
Ele cismou - e pronto! Resolveu ter vários nomes na cidade onde foi morar já na idade madura. O que facilitou a pluralidade era o fato de frequentar locais bem distintos e distantes um do outro. No trabalho era fulano. No clube que frequentava nos finais de semana, sicrano. Nas aventuras amorosas era beltrano. Em casa se identificava pelo nome que constava na certidão de nascimento, cuja cópia ele ganhou dos pais e mandou ampliar do tamanho de uma parede do sobrado onde morava sozinho. No começo da história inventada ficou meio atrapalhado. Tinha de ficar ligado para atender aos chamados. Depois se acostumou. Viveu assim muitos anos, período no qual só raras vezes esteve para ver sua maluquice desmoronar. Fulano, Beltrano, Sicrano e ele mesmo nunca se envolveram com crimes ou deram golpes na praça. Um dia se apaixonou perdidamente por uma zinha. Em menos de dois meses ela aceitou o convite para morar com ele. Ao entrar no novo lar viu o documento na parede e ficou quieta, apesar de tê-lo conhecido como Sicrano. Ela viveu em paz com todos eles. Zinha tinha várias personalidades.
segunda-feira, 11 de maio de 2015
Teorema
O fuinha deixou o cabelo crescer para se parecer com John Lennon. Usava óculos de aro redondo. Mas era e tinha cara de árabe - e ajudava o pai numa loja de sapatos. Naquela turma, era rico, mas estudava num colégio público. Pão duro! Andava num carrão antigo que fazia sucesso entre as meninas. Um dia saiu com a mais linda de todas - e o vizinho de classe que a olhava e tinha medo de falar, apesar de ser correspondido, passou mais uma noite sem dormir e sofrendo. Até o dia em que uma professora falou a todos daquela classe de subúrbio de cidade grande sobre a necessidade da arte como porta para abrir os caminhos do conhecimento. Falou, em resumo, sobre o que valia a pena, ou seja, a própria vida sem as amarras, sem as viseiras, sem o engessamento, sem o embotamento - aquilo tudo que existia desde o primeiro dia de vida. Partiu então para a aventura num cinema de arte na praça do Centro, distante uma hora e meia no ônibus sacolejante. O que viu, até hoje não esquece. Não entendeu, mas sentiu. A pancada foi tão grande que cinquenta anos depois ainda aprende com Pier Paolo Pasolini e admira a longevidade de Terence Stamp. O Teorema, não decifrou, porque as relações humanas são assim mesmo - e é isso o que o faz achar a existência tão emocionante.
quinta-feira, 7 de maio de 2015
Na vida dos anões
Nunca tinha visto nas ruas da cidade até se encantar com "Também os Anões Começaram Pequenos", filme do diretor Werner Herzog. Era cinéfilo - e gostava de assistir tudo em casa. A internet facilitou seu trabalho. Baixava tudo. Mas a partir daquele filme começou a sair. A pé. Procurava. Queria saber se existia. Queria conversar, fazer amizade. Um dia viu um casal saindo de uma loja de eletrodomésticos no Centro da cidade. Apesar da timidez, tomou coragem, se apresentou e contou sua história. O casal nunca tinha ouvido falar do filme e muito menos do diretor alemão. Ele se comprometeu a levar o vídeo para a casa deles. Era uma forma de se aproximar. Eles aceitaram. Ele foi. Tão bem recebido que até demorou um pouco mais depois do fim da história. Comeu as broinhas de fubá que só conhecia nos contos de Dalton Trevisan. Adorou também. Estava emocionado e tão à vontade com nunca acontecera em sua vida. Antes de se despedir, falou sobre isso e chorou um pouco. O casal de anões pediu para ele voltar quando tivesse vontade. Antes de sair o homem da casa quis tirar uma dúvida. Perguntou se todos na família dele eram da mesma altura. Ele disse que não - a maioria era baixinha. Só ele atingira os 2,20m.
quarta-feira, 6 de maio de 2015
Sem cura
De Paulo Leminski
Leite, leitura
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo,tudo,tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura
Leite, leitura
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo,tudo,tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura
Trinca, trincando e desbundando
Chegou no manicômio algemado, só de cueca e no camburão da polícia. Os olhos injetados, babava pelos dois lados da boca. Não conseguia falar, dentes rangendo. Levaram-no para a unidade de desintoxicação, aplicaram sedativos, deitaram-no na cama, amarraram seus braços e pernas. Uma enfermeira grávida perguntou, depois de um tempo, se ele estava se sentindo melhor. Ele olhou e disse: "Trinca, trincando e desbundando". Ela estava acostumada àquilo. Só não gostava muito quando chegavam os alcoólatras que entravam em estado de delirium tremens - porque os bichos que viam os faziam urrar de pavor e ela achava que isso o seu bebê poderia ouvir e não gostar. Uma semana depois o trinca, trincando e desbundando já estava sóbrio e conversando com os outros pacientes internados. Contaram como chegou e o que falou. Ele tentava lembrar de todo jeito como aconteceu tudo aquilo, mesmo porque até a véspera do ocorrido nunca tinha colocado nenhum tipo de droga na corrente sanguínea. Era um careta radical. Então lhe veio a imagem da festa onde estava tomando água mineral e foi até a cozinha procurar algo para comer. Não achou e abriu a porta de um armário. Lá havia uma bandeja de prata e com um monte de pó branco em cima. Achou que era de comer. Pegou uma colherinha, encheu-a, colocou na boca e engoliu.
terça-feira, 5 de maio de 2015
segunda-feira, 4 de maio de 2015
Visita
Foi juntando todos os cartões de visitas que recebeu na vida. Nunca precisou olhar algum, mas, sem saber o motivo, colocava-os dentro de uma gaveta. Quando se deu conta, anos depois de lançar ali o primeiro, de uma gráfica cujos números de telefone tinham cinco algarismos a menos do que os atuais, o local estava abarrotado. Um dia resolveu fazer uma limpa, mas olhando um por um. Tentava resgatar na memória quem era a pessoa que lhe dera aquele pedacinho de papel retangular com nome, endereço, telefone, etc. Claro que não recordava, mesmo porque, para as mínimas coisas recentes, os neurônios já estavam falhando. Demorou uma semana fazendo isso, mas um dia um dos cartões o fez parar - e os olhos brilharem. Lembrou! Era o de uma casa de tecidos numa rua antiga de uma cidade grande. Havia um vitral ali dentro que o encantou. Era muito grande, ficava nos fundos da loja e, ao lado dele, uma escada estava grudada na parede. O vendedor disse que era exatamente para quem, como ele, se maravilhava. E o convidou para subir e olhar através daquela obra de arte. Foi o que fez até chegar a um ponto onde podia olhar através de uma flor que a mão de uma mulher segurava. Foi então que viu uma santa que encimava a cúpula de uma igreja que ficava ali atrás, mas ele nunca tinha reparado. A imagem olhava exatamente para aquele ponto do vitral. Ele fez o sinal da cruz e, anos depois, guardou apenas aquele cartão para sempre.
sexta-feira, 1 de maio de 2015
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