quinta-feira, 10 de março de 2016
Aqui de cima
Daqui de cima o silêncio é perfeito. As cidades parecem amebas amestradas, com veículos em forma de vírus correndo por sua artérias. Há o mar e os rios, mas o cheiro de podre e os dejetos que o bicho homem joga neles não chegam aqui. Restam as montanhas, um pouco de mata nativa, muitas plantações regadas a herbicidas, mas isso não me interessa. Faz tempo que fico observando tudo como se estivesse me limpando do que me atacou aí embaixo. Claro que me chamaram de louco, pancada, esquizo – porque não parava de gritar contra a barbárie da destruição constante. Um dia me penduraram numa árvore. Pelo pescoço. Confesso que não senti nada porque me considerava um morto em meio a tantos vivaldinos. Morri? Não sei. Veio a escuridão e ao acordar estava instalado numa nuvem enorme e que toma várias formas na trajetória inconstante que faz. Estou sozinho, mas finalmente faço chover. Na minha vida na terra eu só chovia no molhado, como diz um ditado popular de lá. Sou um anjo, mas não se preocupem: vingador só quando lembro de alguém que, mesmo para os escrotos que estão bem longe daqui, fez maldade além do normal.
quarta-feira, 9 de março de 2016
Tiro no peito
O tiro foi certeiro, apesar de a lente da mira telescópica estar empoeirada. O bicho medonho e perigoso não parava de saltar entre os galhos da árvore centenária. Às vezes descia ao chão e, de repente, estava num lugar que eu conhecia, na vila. Aí ele voltava. A arma apareceu não sei como em minhas mãos. Pelo peso, estava carregada. Um chumbinho destes de armas de pressão. O que está acontecendo? Agora o animal foi para a rua de terra, do lado da calçada onde havia casas e em frente a um grande terreno baldio. Parou por um instante, o decisivo, o do aperto no gatilho. Ele caiu imediatamente - mas como num filme de Sam Peckinpah (Meu Ódio Será Sua Herança), vi em câmera lenta o pequeno buraco se abrir no peito, um fio de sangue a escorrer. O que está fazendo meu filho mais velho aqui? Eu sou uma criança ou um velho? Ele foi lá e descobriu que o bicho não tinha nada de perigoso. Era um pequeno macaco, já de idade. Deus!! O que é que eu fiz? Mandei o garoto levar o animal inerte para o terreno em frente, onde alguns arbustos poderiam escondê-lo. De que? A angústia se instalou na garganta. Matei! Matei! Olhei então a porta do quarto que estava aberta. Uma luz que vinha do fim do corredor sinalizou que estava na hora de sair da cama. Pulei. Feliz. Fiz o café. Tomei. Mas a imagem do rosto do morto e o buraco com sangue no peito não saiu mais da lembrança neste dia.
terça-feira, 8 de março de 2016
segunda-feira, 7 de março de 2016
No circo
No circo mambembe das minhas lembranças eu não vi o Globo da Morte, mas Tonico e Tinoco cantaram sob um lona toda remendada. Estava montado num terreno baldio, chão de terra batida, arquibancada de madeira velha, cadeiras rangendo na frente do picadeiro. Não havia bichos, talvez um domador de pulgas, um mágico furreca e uma trapezista com belas ancas, uma boca muito vermelha, além do maiô branco com miçangas brilhantes. O circo ficou pendurado na minha mente e quanto mais o tempo passa ele vai modificando as formas e atrações, apesar de continuar pobre e Tonico e Tinoco nunca saírem de lá. Será que foram mesmo? Muitos anos depois encontrei um deles depois de um show e, claro, perguntei se tinha cantado naquela vila. Ele disse que sim - e eu acreditei mesmo, porque, tenho certeza, depois disso o cantor passou a pensar no local e me viu lá, perto da lona, com os olhos vidrados e o coração amolecido ao ouvir Tristeza do Jeca.
Poetas velhos
De Paulo Leminski
Bom dia, poetas velhos.
Me deixem na boca
o gosto dos versos
mais fortes que não farei.
Dia vai vir que os saiba
tão bem que vos cite
como quem tê-los
um tanto feito também,
acredite.
Bom dia, poetas velhos.
Me deixem na boca
o gosto dos versos
mais fortes que não farei.
Dia vai vir que os saiba
tão bem que vos cite
como quem tê-los
um tanto feito também,
acredite.
domingo, 6 de março de 2016
quinta-feira, 3 de março de 2016
Buraco negro
Acordou e viu que no caderno que mantinha ao lado da cabeceira da cama estava escrito algo novo. "A vida que o homem tem hoje é um enorme buraco negro. E sabemos o que há nele: o nada". Estava assim, entre aspas, para ler como se alguém falasse o tempo todo, infinitamente. Tentou lembrar se tinha acordado no meio da noite ou sonhado com algo parecido. Morava sozinho, sem bicho. No trigésimo andar de um edifício feito para solitários como ele, onde o espaço maior de um apartamento englobava o quarto, que era sala e cozinha, e um banheiro minúsculo, não havia o autor ter sido outra pessoa. As letras em forma estavam bem desenhadas. Eram suas? Pensou muito a respeito disso. Só então notou que não havia a luz da cidade na janela sem cortina, e que ele a do abajur estava apagada, assim como a do teto. Mas tinha lido a mensagem. Estava na escuridão e conseguia ver. Era um sonho? Era um pesadelo? Era o próprio buraco negro? Alguém bateu à porta. Foi abrir. A morte que apareceu no filme O Sétimo Selo estava ali. Disse que chegara a hora, mesmo porque a vida inteira dele tinha sido um fracasso. A foice baixou certeira. Ele não sentiu nada.
quarta-feira, 2 de março de 2016
O fim
Faço o difícil para me agradar. É difícil. Me pediram para visitar um psiquiatra. Não vou. Ninguém pode me entender ou reescrever meu script de vida. Tenho dinheiro. Muito. Mas não gosto. Já morei nos lugares mais chiques e nos mais isolados. Nunca fiquei contente. Quando me falam que sou depressivo, tenho vontade de sacar minha PPK de ouro e dar um teco no meio dos cornos do falastrão. Sou feliz, mas não acho isso. Não sinto agonia em viver, nem fico encostado ou deitado. Mas algo sempre me diz, ou seja, ali dentro da cabeça, que não consegui o que seria o máximo para mim. Casei há muito tempo com uma santa, tenho filhos, eles me enchem de alegria... mas falta algo. Um dia dei a volta ao mundo num veleiro. Sozinho. Já voei de balão sobre o Kilimanjaro. Tenho mais de cinquenta anos e, num dia normal, sem querer, pensei na morte. Descobri que talvez fosse isso: o medo do fim, que pode ser agora.
terça-feira, 1 de março de 2016
Objeto
De Paulo Leminski
de meu mais desesperado desejo
não seja aquilo
por quem ardo e não vejo
seja estrela que me beija
oriente que me reja
azul amor beleza
faça qualquer coisa
mas pelo amor de deus
ou de nós dois
de meu mais desesperado desejo
não seja aquilo
por quem ardo e não vejo
seja estrela que me beija
oriente que me reja
azul amor beleza
faça qualquer coisa
mas pelo amor de deus
ou de nós dois
Amor do cão
Alguém disse que amor de cachorro é o mais puro. Talvez por isso ele sempre teve ciúme dos que cruzaram sua vida. Se sentia pior que os animais, mesmo aqueles que, por costume na pobreza, ficavam presos numa corrente engatada num arame que corria rente ao muro. Uma vez viu um ser sacrificado de uma forma muito cruel. Sem sabe o que fazer e ao ver o doente agonizando sem morrer ao lado da cova, começou a gritar para ele partir, como se isso fosse possível. A cena nunca lhe saiu da cabeça, assim como a do cão do vizinho que amanheceu enforcado porque atacava negros na rua. Mais velho, tratava os que estavam mais próximos com a dureza dos que não querem se entregar àqueles olhares sinceros e pidões. Não era violento, mas implicante. Não queria que ficassem dentro da casa, mas eles ficavam e faziam tudo para conquistá-lo. De uma senhora dona de um de pelos preto e branco, ouviu que a cadela gostou dele ao primeiro contato. Porque eles são assim. Resistiu - mas sempre que via carrinheiros com seus companheiros inseparáveis, se imaginava empurrando um daqueles veículos com a princesa em cima, olhando a plebe ignara do alto de sua vitória. Não aconteceu isso. Não aconteceu nada. Ela foi embora por doença. Ele ficou remoendo, mas fazendo esforço para não demonstrar. Naquele dia se enfiou embaixo das cobertas. A casa estava mais do que vazia.
segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016
Fardos
O sonho dele não era ter dinheiro, mas ver dinheiro. Muito. Era pobre, claro, mas tinha o defeito de não dar a mínima para o tal, ao contrário da maioria que colocava o valor do papel fedido como prioritário. De alguma maneira ele juntou a imagem que tinha da infância, a de um monte de tijolos empilhados esperando a hora de entrar na construção do casebre da família, e o que queria presenciar. Um dia, já adulto, conheceu alguém que lidava com grandes quantias. Primeiro ele perguntou quanto cabia numa mochila das grandes. Em dólares. Quinhentos mil foi a resposta. Então contou seu desejo de ver fardos de notas amontoadas. Foi chamado numa madrugada pelo amigo. Entrou na mansão e, no sótão, que mais parecia um loft do tamanho de um campo de futebol, viu a montoeira encostada num canto. Ficou admirando de longe. Não pediu para saber quanto tinha ali - e se era limpo ou sujo. Foi para casa, acordou a mulher e disse que no dia seguinte iria começar a comprar tijolos para fazer o puxadinho dos sonhos. Aquele que aumentaria a cozinha e caberia o fogão de cinco bocas que ela tanto sonhava.
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016
Derrubadas
A menina enlouqueceu de vez e ocupou a casa centenária que ficava sob a sombra de uma mangueira mais antiga. A mãe de criação não aguentava mais tanta loucura no meio daquele mundão longe de tudo. Doença da gota serena, dizia. Não adiantaram as rezas, a promessa, a viagem a Juazeiro do Norte, a beberagem em garrafadas, nada. O prato de comida era colocado no batente de uma janela. Ninguém via quando ela o recolhia para comer feijão de corda, farinha e um naco de carne seca. Foi depois de um tempo, entretanto, que os homens começaram a rondar a casa. Sempre à noite. E entraram. E gemidos se espalharam no ar. E a notícia também. Mais homens vieram. Então a mãe fez o que achou certo: derrubou a casa e depois cortou a árvore. A menina sumiu. Um dia foi encontrada ao lado do açude de água salobra. No rosto, inerte, um sorriso doido.
Não gosto
De Dalton Trevisan
Não gosto de você, amor. Mas não fique triste: não gosto de ninguém. Nem de minha mãe eu gosto.
Não gosto de você, amor. Mas não fique triste: não gosto de ninguém. Nem de minha mãe eu gosto.
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016
janela fechada
De Sérgio Rubens Sossélla
a noite
essa janela fechada
essa janela fechada
*
os sinos
só dizem sim
só dizem sim
*
as pinturas
os retratos nos olham
com saudade
os retratos nos olham
com saudade
*
no escuro
os livro são outros
os livro são outros
Madeira
O rio Madeira é marrom. O rio Madeira atrai pelo nome. Fui lá. Queria embarcar em Porto Velho e chegar a Manaus. Minha bunda ficou quadrada antes, porque entrei num toco-duro na rodoviária de São Paulo e rasguei um pedaço do Brasil na estrada. Tinha lido num guia que havia barco todo dia para o que sonhava. Informação errada. Sem dinheiro, procurei um padre e dormi num prédio antigo que tinha sido seminário. Coisa de filme. No dia seguinte, barco, mas só até um vilarejo perdido na mata. Um sargento ofereceu a delegacia do lugar para acomodação. Na rede de uma cela vazia eu apaguei depois de ouvir o som da floresta. Havia uma capela e o povo mais bonito que já vi, principalmente por causa da cor - um marrom que realçava mais no contraste com a mata e por causa dos dentes, brancos de doer. Tomei banho no Madeira. Vi um barco ancorado e a imagem dele de dentro da água era o resumo de tudo. Simples e absurdo. Fiquei ali. Talvez para sempre, mesmo navegando pelo resto da vida.
terça-feira, 23 de fevereiro de 2016
Pesadelo
Acordou assustado com o pesadelo. Tinha sido sequestrado e obrigado a engolir uma fortuna em notas de cem dólares - uma por uma. Quem o obrigou ria com a cara mais debochada do mundo. Para cada nota mastigada e ingerida, o algoz queimava outra, só para que a vítima tivesse certeza do quanto ele dava valor a dinheiro. Com a barriga estufada, não sentia dor, apenas lamentava o fato de ver o desperdício daquela fortuna. Quando foi solto, saiu correndo para o banheiro. Foi aí que o despertador tocou, cedinho. A suíte gigantesca do apartamento o aliviou. Estava sozinho, porque não gostava de compartilhar nada. Levantou e sentiu o pijama de seda grudado no corpo. No banheiro, se despiu, abriu o registro da ducha, entrou e, quando estava regulando a temperatura da água, sentiu a dor forte. Caiu. Horas mais tarde a empregada o encontrou no box. Afogado. O que intrigou a polícia foi um pedaço de cédula encontrada nos excrementos.
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016
Dente de ouro
Enfiaram uma faca na minha boca. Arrancaram um dente. Tudo a sangue frio. Não fiz nada. Não sou culpado. Mas é assim mesmo na vida. Um dia você sorri e no outro dia tem que que se trancar em casa para não mostrar o buraco dentro do buraco da boca. Lembrei da história do amigo que, num hotel nos Estados Unidos, foi escovar os dentes e um deles caiu e sumiu no encanamento da pia do banheiro. Ele desmontou tudo na esperança de achar o tal. Achou. E colou. Mas o estrago no banheiro resultou numa inundação no apartamento de baixo. Parece história do Hunter Thompson chapado. Fui ao dentista. Ele primeiro falou do preço do dente postiço. Pedi um de ouro. Ele disse que não se faz mais isso. Dobrei o valor. Depois de colocado, vou pegar quem me enfiou a outra faca.
domingo, 21 de fevereiro de 2016
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016
Céu e vermes
Há sangue no céu. E manchas negras e cinzas. Raios cortam tudo como lâminas dos deuses. O que aconteceria se este planetinha habitado por vermes recebesse na cara toda essa, assim, de repente? Sufocados, talvez conseguíssemos sair deste estado de quase putrefação consentida, dessa enganação que agora tem o brilho tecnológico, irmão da imagem refletida nos espelhinhos que tanto encantou os índios quando os portugueses cá chegaram. Depois, eles, os silvícolas, como ensinaram nos livros, se foderam de véu e grinalda. O que acontecerá com a geração que não tira a cara da telinha do celular para saber das futilidades da hora? O sangue foi embora, ficou tudo cinza. Para que todos saibam que o purgatório é aqui mesmo. Ainda bem que amanhã vem o sol. Se pelo menos ele queimasse os canalhas...
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016
Dois cineastas
Dois meninos querendo cinema é um acontecimento. Encontrá-los por acaso vale um filme. Cineastas já são. Falta a câmera na mão. Falei a um deles, de 13 anos, sobre os fotógrafos que trabalham ou trabalharam com os grandes diretores. Pedi para pesquisar e olhar. Ao outro, praticamente com a mesma idade, contei como me perdi para o bem na vida ao ver, já adulto, Teorema, do Pasolini. Terence Stamp me tirou do gueto da pobreza cultural e nunca mais parei de olhar o mundo com outros filtros. Dois meninos num mundo tão imbecilizado pela internet... Tudo está aí, para ver e fazer. Orson Welles entrou numa caixa com os filmes shakespeareanos, assim como Samuel Fuller saiu com a violência poderosa de suas imagens e histórias. Preto e Branco. Preto no Branco. Os meninos têm muito o que beber, mas descobriram a fonte. E lá estava um velho ainda não saciado. Porque é assim mesmo.
terça-feira, 16 de fevereiro de 2016
A voz
Minha voz gravada não é a minha - quando a ouço. Nem o que vejo no espelho sou eu. Hoje tive de fugir da alguém que queria porque queria que eu escutasse o que tinha numa fita cassete. Lembrei de quando a gravação aconteceu, há muito tempo. Fiquei tão triste que me refugiei embaixo da cama no apartamento onde morava sozinho. Que coisa horrível! Como as pessoas ainda conversavam comigo sem demonstrar desprezo? Será que disfarçavam para rir depois? Voz tinha o Heron Domingues, tem o Ferreira Martins... Mas a minha, anasalada, arrastada, molenga... E o rosto? Parece um pandeiro cheio de manchas. Tem também a barriga que toma conta do tronco, onde estão espetados os braços e as pernas finas. Outro dia, porém, me convidaram para gravar um comercial radiofônico. A grana era alta. Fui. Explicaram que era uma experiência para manter guardas noturnos e sentinelas acordados durante a madrugada. Não gostei disso. Minha voz tem outra destinação. Talvez para curar porre ou ressaca brava. Mesmo assim, gravei. Para guardar. Quero que tudo seja ouvido no meu velório. Para aumentar o repertório tradicional de piadas.
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016
Marcas
Fiz a foto sem a câmera, como ensinou mestre Cartier Bresson. Coloquei as minhas mãos sobre as dela, que estavam entrelaçadas. As marcas eram idênticas - de vitiligo, principalmente nos dedos, brancos, como se estivessem descascados. Depois olhei o vestido preto e, acima da gola, o rosto tranquilo, da missão cumprida. Grande costureira, foi ela mesmo quem fez recentemente, quando sentiu que a hora da despedida final estava chegando. Também disse a alguém próximo que sentia muito não ter podido fazer tudo, que ainda faltavam coisas. Ah! Esse buraco na alma só existe aos que realizaram demais - e assim foi com ela. Então pensei que, além de tudo que me deu, estava ali a prova, que nunca tinha visto antes, mas que agora, no último instante, apareceu, como um legado passado para que nunca pare, nunca desista, ainda mais porque as uso assim, datilografando, como ela as usava com agulha e linha, por exemplo. Por isso, fotografei e guardei aqui comigo. Então, o caixão foi fechado e colocado dentro da terra. Para sempre.
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016
Esponja
Tem uma esponja tirando minhas forças, empalidecendo minhas cores, querendo sequestrar minha alma. Não sei onde está, talvez aqui dentro, parecida com aquela que incomodava Fernando Pessoa, mas ele sabia descrever e nunca usou esponja para descrever o desassossego. Já estive nas catacumbas, embaixo de cobertor sujo, com medo de olhar por qualquer fresta. Agora não é assim, mesmo porque consigo pensar um pouco, andar, falar, até me entusiasmar em períodos curtos. No mais, olha ela me drenando! O melhor de tudo é que sei que vai sumir, que é preciso ter paciência, mas a danada absorveu isso também. Me mandaram ao supermercado. Fui, obediente. Ainda bem que não pediram o produto, mas eu dei de cara com uma pilha enorme, em duas cores. Tive vontade de ir a outros corredores para trazer os infalíveis álcool e fósforo. Seria uma boa fogueira, mas acho que iria preso como piromaníaco - e a minha esponja particular continuaria firme, me definhando dentro da cela. Agora senti no meu peito a maldita. Vou ficar quietinho. Quem sabe ela se dê conta de que já tirou tudo o que eu tinha e me abandone?
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016
No fundo da caverna
No fundo da caverna havia uma poça de água. Era luminosa, apesar da escuridão daquele canto. Eu ouvia o barulho do mar lá fora - e não sabia o quanto tinha andado até chegar ali. O paredão que ia até o teto era muito alto. Aquilo parecia uma catedral. Fiz das duas mãos uma concha e peguei a luz. Não vi mais nada. Imediatamente estava em outro lugar, como num livro do Stephen King onde uma escada dentro do trailer levava o curioso para uma outra dimensão. Vi um espelho. Um, não, vários. Minha imagem era em preto e branco, bem contrastada, como num filme fotografado pelos mestres que foram para Hollywood antes de meados do século passado. Os olhos permaneciam coloridos, verdes - e havia uma lágrima imobilizada abaixo do direito. Ela brilhava. Não tive medo. Uma paz tomou conta de tudo. Não tive vontade de voltar, nem de explorar o ambiente, mas toquei no espelho mais próximo. Minha mão atravessou. Aí segui em frente. Estava de novo na caverna, só que saindo e sentindo a brisa que vinha do oceano. Ele era verde. Como meus olhos. Chorei de emoção. Uma lágrima que saiu do olho esquerdo entrou pelo canto da boca. Me senti alimentado.
no apocalipse
De Sérgio Rubens Sossélla
a voz que disse
no princípio era o verbo
transferiu-se do gênesis
e me espera no apocalipse
(minhas mãos vazias que o digam)
terça-feira, 9 de fevereiro de 2016
O angu e a água
Duas grandes frustrações que me deixaram em crise profunda, dessas de marcar consulta extra com a equipe de consertadores de cabeça. Uma foi recente, depois de ser fritado na calçada da Praça Mauá vendo aquele Museu do Amanhã que a Rede Globo vendeu colocando em toda programação um pano que flutuava por causa de um ventinho embaixo. O envólucro é bonito, mas vi um peixei engolindo gente pela frente e expelindo por trás, em forma de povo, direto para a Ilha Fiscal. Fui ali por causa do Angu do Gomes, que tem mais de meio século de tradição, desde o tempo que o Gomes o inventou e servia no tabuleiro para quem não tinha muito dinheiro para comer no Centro Velho quando a cidade era a capital federal. Não experimentei o tal angu porque angu maior estava o trânsito e tinha compromisso do outro lado do túnel, aquele que leva àquela parte onde os ricos não saem, apesar do noticiário diário de tiroteio, mortes, etc - uma sacada ótima da rede para que forasteiros não se entusiasmem em atrapalhar a vida deles, aquela, do esssscorrega pra dentro. Passei vários dias sem sair do quarto, mesmo porque lá fora o inferno não tinha controle remoto para ligar o ar condicionado. Aí lembrei da água e do bar só com 500 tipos deste produto que existe em Paris e que não me levaram quando passei por lá. Como só falo le pescoço, como Didi Mocó, não arrisquei ir sozinho. Mas o angu e o boteco estão lá, me esperando. O psiquiatra torce para mais uma frustração. Assim fatura mais uns trocos.
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016
homenagem geral
De Roberto Prado
brindo
saúdo
louvo
aleluia
honra e glória
a todos os que ave
e dão vida e graça
a este meu
salve salve
mau hálito
a inveja é uma merda ou o mau hálito da alma como disse alguém que disse e entendia disso porque é assim mesmo por isso espalho e fico olhando a cara de quem ouve e às vezes noto que a pessoa sente o próprio cheiro que não é bom porque olha assim e gostaria de ter essa ideia ou a grana daquele bacana da cobertura do prédio que chamam de a pilha do gato ou então do apresentador que ganha milhão ou o jogador de futebol por causa do carro que é um monte de lata então esquece ou tem medo de olhar o próprio rabo porque sente dor por morar na vila no barraco ou então no condomínio de classe mérdia e aí olha para o vizinho que tem muié bonita e a dele se lorgou no mar de massas bombons e não fazer nada e embagulhou que vida hein e o que havia de mais bonito nunca mais porque ele nunca olhou só para os outros e assim caminha essa humanidade que exacerba tudo isso com o segundo e meio dos famosos olha lá o bigbrother que mostra a idiotice igual na fazenda do outro canal e o do mau hálito também quer aparecer para não sabe o que quem sabe ter dinheiro e fama e trocar de mulher e de homem e de casa e de carro e cadê meus filhos um dia pode pensar e não tem mais jeito porque são iguais salve-se quem puder.
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016
Na ponte
Saí no "Nóis Sofre Mas Nóis Goza" logo no primeiro dia. O sol era de derreter os miolos. A largada foi dada na frente de um boteco onde todo mundo esquentou as turbinas. Meio-dia. A banda, onde os metais se destacavam, atacou de frevo e fui atacado por alguma coisa inexplicável que me fez começar a pular - e só parar quatro dias depois. Incorporei Ariano Suassuna, Siba e, principalmente, Chico Science com toda a Nação Zumbi e a força do mangue. Ao passar na ponte entre Recife e Olinda, vi um Galaxie sem portas, sem teto, lotado de gente como uma carruagem do Apocalipse. Pensei que estavam indo, como eu, para o inferno. Errei. Era o céu daquele carnaval onde o povo apenas se diverte e coloca todos os bichos para fora e para longe - em nome da alegria pura e simples. Faz tempo. Quase quatro décadas. A idade de uma das filhas, gerada lá - por isso poeta e princesa da cor negra.
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016
Com Bogart e Bacall
Estava em Assunção, mas imaginava Havana do tempo de Fulgêncio, com cassinos e infestada de americanos e mafiosos. Isso porque ao ver o hotel antigo, estilo casarão, se encantou, entrou com o carro e se hospedou. Na bagagem levava o uísque do Collor, Logan, a garrafa pela metade, tomada no bico, calor abafado de 35 graus. Um banho gelado e foi ao restaurante comer algo para tentar rebater o porre. O teto era um afresco só. Pensou em Michelangelo na Capela Sistina, mas isso depois de entornar a primeira garrafa de vinho. Depois, quem segurava o bicho? Foi incomodar uma mesa de gringos sem falar uma palavra em inglês. Voltou para o quarto e o telefone era do tempo do onça. Pediu ligação para o Brasil e o número que passou era da antiga casa. Chorou ao falar com um dos filhos. Desmaiou sentado numa cadeira antiga. Acordou com o sol iluminando o rosto. Olhou em volta e decidiu trocar de hotel. Foi para um moderno. Aquele outro era como um filme visto anos antes, com Bogart e Bacall. Agora ele era ninguém - e precisava trabalhar para justificar a viagem.
terça-feira, 2 de fevereiro de 2016
monstros
De Sérgio Rubens Sossélla
os monstros aterradores saíram dos sonhos
porque também não agüentavam o esquecimento
Veneno
O envelope com veneno de rato era muito atraente. Cores fortes. Vermelho e azul. O ratinho que viram na cozinha se deliciou com as porções que colocaram para ele. Talvez o produto estivesse vencido, não se sabe. Toda noite uma quantidade era colocada num canto perto do móvel da pia da cozinha e, no dia seguinte, nada do veneno e muito menos do rato. Pararam de alimentar o bicho e e colocaram o pacotinho no parapeito da janela da garagem. Olhei aquilo e resolvi fazer um teste. Primeiro misturei no farelo colocado para os passarinhos. Fiquei olhando canários da terra e rolinhas se fartando - e nada deles caírem durinhos e de perninhas esticadas para cima. Depois fiz isso na ração do cachorro. Ele comeu tudo, lambeu os beiços e não apareceu imóvel com os dentes arreganhados pra fora. Tinha alguma coisa errada com aquilo. Resolvei colocar na vitamina matinal. Tomei sozinho um copo grande com o que restava do tal. Fui para cama esperar o resultado. Nada. Para não dizer que continuou tudo normal, juro que vi na tela da tv um político dizer que era, sim, um canalha e ladrão do dinheiro do povo. Mas não era delírio, mesmo porque não aconteceu no Brasil. O vídeo era antigo. Depois do que falou, ele tirou um revólver Colt Magnum 45 de um saco de papel pardo, enfiou o cano na boca e arrancou o tampo da cabeça com o balaço. Liguei para o fabricante e reclamei do veneno. Ficou acertado que mandariam uma caixa com vário envelopes. Vou aumentar a dose para todos.
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016
Dois andares e uma escada
A distância entre o andar de cima e o de baixo era de milhões de anos luz. Foi num lugar onde entrei para trabalhar e, macaco velho, tirava sarro de quem poderia ser meu patrão - porque ele só pensava em dinheiro. Boa praça. Bem embaixo da sala dele ficava outra, onde a turma que produzia o material para o produto da sua negociação ralava todo dia. Ali estava um guri com pouca noção do que se tratava tudo aquilo; Universitário, morador do subúrbio, vários irmãos de pais diferentes. Enquanto o de cima andava de jatinho, ele se apertava em dois ônibus para ir e voltar de casa para aquele templo de consumo. Não sabia direito o que queria da vida. O outro, de cima, sabia muito bem. E tinha todos os contatos para tal, além de perseverança. O combustível do de baixo ainda não tinha aparecido, ou seja, a chama, o fogo da paixão pela profissão. Uma escada separava o patrão do talvez futuro empregado. O de baixo nunca subia os degraus. O de cima subia, descia, passava sem prestar muita atenção no garoto. Tímido, este olhava o poderoso desfilando no saguão de pé direito altíssimo e, depois que saía do prédio, se deparava com uma igreja pintada toda de azul. Fazia o sinal da cruz. Ninguém nunca soube para que. Nem ele.
Parada cardíaca
De Paulo Leminski
Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.
Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.
Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.
sexta-feira, 29 de janeiro de 2016
quinta-feira, 28 de janeiro de 2016
Irmãos Metralhas
Conheci os Irmãos Metralha. Eles eram guardadores de carro perto do local onde eu trabalhava. Ficavam numa esquina de uma rua sem saída e se acomodavam embaixo de uma árvore frondosa. Ali puxavam um fuminho e, no fim da tarde, recolhiam a grana de quem estava a fim de uma "farinha" que eles pegavam com um tira numa praça do Centro. Quando chegava a encomenda, uma moçada se reunia numa casa abandonada que havia na mesma esquina para lançar o arpão na veia. Um dos Metralha era exímio no manejo da agulha. Foi o que morreu mais cedo, com uma saraivada de balas. O outro, encontrei anos mais tarde. Parecia um trapo humano. Não devia ter nem trinta anos, mas, contou, tinha Aids e não tratava. Continuava se arrastando atrás da droga e, quando estava um pouco melhor de saúde, puxava carros encomendados por uma quadrilha. Convidei-o para tomar um café ou suco. Entramos na lanchonete e quase não nos serviram por causa da aparência dele. O suco de laranja, contou, era algo que nem lembrava o gosto e quando tinha bebido pela última vez. Adorou. Tomou tudo num gole, depois limpou a boca com as costas da mão direita, deu tchau e foi embora. Nunca mais o vi. Deve ter ido se juntar ao irmão.
quarta-feira, 27 de janeiro de 2016
Meus mortos
Meus amigos mortos insistem em me visitar. Eu gosto. Não, não tem nada a ver com a palhaçada dos zumbis importados dos Estados Unidos que os colonizados incorporam e ficam esperando uma câmera de tv para se exibir. Meus mortos aparecem em pessoas que estão por aí - e que encontro nas ruas. Os traços dos rostos me lembram eles, meus queridos que partiram antes do tempo e com quem convivi, principalmente no trabalho. Não me assusto. Tenho até vontade de ir lá conversar com o desconhecido, mas acho que ele, sim, vai se apavorar. O contato do real com a lembrança para me recarrega a carga positiva que eles passaram quando estavam vivos. Eram do bem. Às vezes, horas depois, eu lembro do encontro e choro baixinho, escondido de tudo. Meus mortos são lindos e eles sabem que não adianta ficar procurando-os nas ruas. Eles aparecem quando tudo está na mais perfeita normalidade e quando minha alma está pronta para saudá-los do jeito que gostam - lembrando-os com saudade e para sempre.
terça-feira, 26 de janeiro de 2016
Pizza bomba
Será que as pessoas estão mais loucas do que eu? Ou fiquei velho e decrépito antes de completar 70 e estou vendo chifre em cabeça de coelhinho da Páscoa? Um dia eu saí pela noite dirigindo o Bala com a certeza de que iria achar o apartamento de um casal amigo que não tinha me dado o endereço. Acabei parando e entrando num prédio em construção. Subi escadas, entrei em cômodos vazios e o máximo de coisa identificável que vi foi um vaso sanitário encostado numa parede. Eu bebia e os loucos de hoje fazem coisas bem sóbrios. O vício de ficar consultando 24 horas por dia o aparelho celular. O que é isso? E tirar selfie de tudo para mostrar para o mundo os mesmos sorrisos forçados de sempre? Ou a mania de atravessar a rua sem olhar para os lados, porque está ouvindo música com fones atochados nos ouvidos? Os outros que esperem. Quase atropelei um jovem outro dia porque achei que, naquela rua de trânsito intenso, ele iria esperar o momento certo chegar à outra calçada. Nada disso. Freei e ele nem tchuns. Continuou ouvindo o breganejo com música de corno. Logo depois, um cachorro fez a mesma coisa. Mas estava sem fone de ouvido. A piada do pai da adolescente que olhou o quarto da filha e teve vontade de jogar uma moeda porque pensou que aquilo era um mocó de mendigo, explica muito do que está acontecendo hoje em dia e de noite. Ainda bem que, pelo menos, a medicina está avançada e vou viver até os 130 anos. Talvez nem velho fique, mas não imagino o que nos espera pela frente, do jeito que a velocidade tecnológica está acelerando a imbecilidade individual e coletiva. Melhor nem pensar. Bom mesmo será pedir a pizza que vem voando num drone. Mas tenho medo que um dia tudo saia errado e me entreguem uma bomba de nêutrons em vez de uma meia portuguesa e meia parmegiana.
Bem no fundo
De Paulo Leminski
No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.
segunda-feira, 25 de janeiro de 2016
Pinguins
Meu pinguim morreu. Ele era branco, todo branco. Me acompanhava faz muito tempo. Ficava ali, sempre silencioso, como se observando e tomando conta de tudo. Primeiro na sala do apartamento. Depois, no escritório. Nunca reclamou de nada. Nem do barulho da geladeirinha velha. Acho que, quando notava que eu saía, começava a conversar com seu companheiro. Sim, tenho outro pinguim. Todo preto. Na semana passada, depois do almoço, o branco morreu estupidamente. Entrei e vi o bicho despedaçado no chão. Provavelmente foi atacado pela persiana incentivada pelo vento forte que entrou janela adentro. Recolhi-o numa pá de plástico e enterrei-o com honras de herói embaixo do pé de café que tenho no quintal. Agora o preto está ali, sozinho. Posso jurar que flagrei-o chorando hoje cedo. Fui lá e fiz um carinho nele. Baixinho, disse que estava procurando um outro companheiro/a. Não sei o sexo dele e do que morreu. Nunca pensei nisso. Pinguim de geladeira, pra mim, é como anjo.
sexta-feira, 22 de janeiro de 2016
quinta-feira, 21 de janeiro de 2016
Não gosto
De Dalton Trevisan
- Não gosto de você, amor. Mas não fique triste: não gosto de ninguém. Nem de minha mãe eu gosto.
Pipoca moderna
Atravessou a avenida sob o sol de 42 graus. Meio-dia. Estava descalço porque estava descalço. Correu. Pulou na areia. Mais quente. Correu. Foi para a sombra do guarda-sol colorido, mas com propaganda, que guardaram para ele. Sentou, tirou a camiseta e correu para esfriar tudo na água do mar. Ela estava verde. De poluição. Ele mergulhou assim mesmo. Aliviou. Voltou, sentou na cadeira espreguiçadeira e não sabe se dormiu. Um carrinho todo em aço inox e com rodas de bicicleta parou quase na dis frente. Vendia milho. Uma multidão foi chegando, escolhendo, comprando e comendo. O dono do negócio, de chapéu de palha, sorria. A maioria dos compradores era formada por crianças lindas. As espigas, amarelas, mordidas com cuidado. Tinha acabado de sair da água fervendo. Deitado, ele via os dentes delas. Uma menina negra, de tranças, parou ali perto. Fez pose de ginasta enquanto mastigava. Ele viu e então a coisa começou. No mar começaram a brotar pés de milho, que tomou conta de tudo e envolveu até as ilhas de pedra da linha do horizonte. Depois, as espigas apareceram inteiras, despidas da roupa verde. O sol esquentou mais. A pipocação foi imediata. O mar se transformou novamente, agora branco. Ele não tinha bebido nada, apenas o líquido de um coco. Mas este estava quente. Foi isso? Não sabe. A água salgada avançou sobre os pés dele. Ele levou um susto. Descobriu que não havia mais nada, apenas aquele mar do oceano e ele cercado por um de gente e barracas. Sorriu. Foi aí que sentiu um gosto na boca. Não sabia se era de milho ou pipoca - ou dos dois.
quarta-feira, 20 de janeiro de 2016
A escada e o cão
Tão bonitinho... Cinza. Pequeno. Tem umas manchas que podem significar velhice. Está ali há muitas décadas. No pé da escada de pedra da entrada principal da casa. Já teve a companhia de muitos outros animas. Gatos, principalmente - mas também cachorros, como ele. Muitos. Aquilo era uma festa espalhada no terreno enorme e por dentro de todos os cômodos. Coisas da dona do pedaço que, agora, velhinha, mas ainda agitada, dorme num quarto em local especial de repouso a muitos quilômetros dali. Não soube o nome. Apenas olhei, gostei e fiz foto - ele sempre posudo. Depois, quando mostrei a imagem para alguém que frequenta o local há muito tempo, a surpresa. Ele, o cachorro cinza, de focinho comprido, é um limpador de sola de sapato desde sempre. Corpo de metal resistente - uma chapa mais ou menos fina, aguentou e aguenta anos ali, no tempo. De vez em quando alguém o pinta. Da mesma cor, sempre. Os olhos, negros, alertas, apontados na direção do muro em frente, onde, num canteiro, há uma centena de antúrios. Vai ver que é por isso que resiste - e assim ganhou um eterno admirador.
terça-feira, 19 de janeiro de 2016
homenagem geral
De Roberto Prado
brindo
saúdo
louvo
aleluia
honra e glória
a todos os que ave
e dão vida e graça
a este meu
salve salve
brindo
saúdo
louvo
aleluia
honra e glória
a todos os que ave
e dão vida e graça
a este meu
salve salve
Chispa daqui!
Tá olhando o que, mané? Moro na rua, sim - algum problema? Está incomodado com o que? Meu corpo e minha roupa sujos e fedendo? Eu não ligo. Estou vendo que você é dos babacas perfumados que usam roupa de grife, da moda, feito exército de idiotas. Estou aqui sem fazer nada há muito tempo. Não incomodo ninguém. Não vou falar em sofrimento porque disso você não entende. Se alimenta do cheiro da grana - e se tiver oportunidade, rouba até a mãe, não é mesmo? Faz parte. Não vou te explicar porra nenhuma. Você não sabe o que é ser humano. É um monte de ossos cobertos de carnes. Saradão, hein? Pra que? Ah, sim, para se exibir. Barriga tanquinho feito os sem camisa das novelas que você assiste para adquirir cultura, né? Não tenho pai, não tenho mãe, não deixei meu legado para filhos - como disse um inteligente desses aí que li e respeito. Você, não! Você me olha com nojo, como se fosse diferente, como se não tivesse sete buracos na cabeça e um lá embaixo, atrás, que faz funcionar em banheiro de mármore e perfumado, como se o que saísse não fosse igual ao meu por causa da comida que sai do seu espaço gourmet. Vai continuar olhando? Larguei tudo por causa de gente como você, babaca! O ser humano é inviável, é falso, é traíra, é filho da puta. Sim, há exceções, mas sempre fiquei com um pé atrás - e quando acreditei, me fudi de véu e grinalda, como diziam lá no cantinho onde nasci e zarpei faz tempo. Quer me tirar daqui? Tente. Conheço gargantas de longe. No sentido figurado e a própria. Posso apagar você definitivamente com essas mãos calejadas aqui. Nunca fiz isso, mas é bom chispar daqui logo, senão inauguro a série. Me deixe quieto no meu canto, na minha calçada, na minha escada, no meu mocó, na minha marquise. Sou um trapo, mas não me troco. Sou mais gente que você, que se engana e ri quando é enganado pelos da sua laia. Vai tomar uma ali no boteco da moda. Eu nunca bebi, nunca cheirei, nunca fumei, nunca me droguei. Tentei viver, mas isso é outra história. Você não entende, mané!
segunda-feira, 18 de janeiro de 2016
De Deus
O Dedo de Deus sumiu. Juro que procurei. Aquele mesmo da Capela Sistina, ou o imaginário que nos aponta o caminho, mesmo sendo o do precipício dos infernos. Perguntei para o jornaleiro, um engraxate, o policial, a empregada, a madame, a dona de casa... Todos apontavam o mesmo dedo, indicador, dizendo é ali, caminhe mais um pouquinho que vai ver. Eu caminhava, corria, me esfalfava e... nada do Dedo. Será que ele não aparece para quem quer vê-lo de qualquer forma? Será que colocaram uma luva na mão inteira, um dedal de prata. E se o Dedo caiu? E se pegou uma doença ou então desapareceu no oceano lá embaixo ao indicar para uma caravana de deuses onde fica o Cristo Redentor? Subi mil metros de uma serra carregando uma mochila para me encontrar com um Dedo que não quis aparecer. Vi em algumas fotos mais tarde - mas assim não vale. Dedo é dedo e a falta de dedo serve até para propaganda de um ex-presidente que ilude a todos como se fosse trabalhador. Resolvi sair dali num amanhecer radiante. Na estrada olhava só para o asfalto. Então vi a sombra. Do dedo. Parei e olhei. Exuberante, majestoso, espetacular. Aí, aconteceu. O dedo balançou. Para esquerda e para direita, repetidamente. Depois, parou, e uma nuvem em forma de boca ficou atrás dele.O sinal de segredo foi feito. Não obedeci.
sexta-feira, 15 de janeiro de 2016
quinta-feira, 14 de janeiro de 2016
MARINHEIRO QUE PARTE
De Nelson Capucho
pauto o que posso:
é quase nada
componho navios
de meus destroços
inútil partitura
meus ossos
dos sonhos
restarão rastros?
pauto o que posso:
é quase nada
componho navios
de meus destroços
inútil partitura
meus ossos
dos sonhos
restarão rastros?
Música dos anjos
Os pingos da chuva descem perpendicularmente
como estilhaços negros na direção das costas das duas crianças. Parecem ser um
casal de irmãos. Entre eles, um grande guarda-chuva negro protege os corpos. Os dois
seguram um gato e um cachorro. Ambos olham para quem os está olhando. A pintura
é pequena como a caixa onde ela está na tampa. A sala tem uma janela aberta de
onde se vê uma montanha. A luz que entra ilumina algumas mesas, as poltronas e
cadeiras antigas, uma parte da lareira e um quadro em cima onde um alce velho
solta um bafo que toma conta de tudo. Ali faz frio. Aqui não. As crianças
continuam com o olhar de quem não pedem proteção, mas sim que se atenda a
curiosidade para abrir aquela pequena caixa colocada em cima de uma mesinha
entre poltronas de couro marrom escuro, antigas. Ordem atendida. Então a música que sai
dali toma conta de tudo, com a suavidade que se imagina brotando das
pequenas arpas dos anjos que flutuam nas nuvens. Há quanto tempo... Caixinha de
música... A palavra encantamento é pouco escrita, lida e muito menos utilizada
para descrever momentos como esse. Um senhor sentado sozinho numa sala imensa,
um raio de luz entrando pela janela do mundo exterior, um desassossego que
deixou serra abaixo, no trânsito das grandes cidades. Ele recosta a
cabeça na poltrona e deixa a caixinha o levar. Para dentro. Para a paz que
existe e ele pensava ter perdido. Ao olhar de novo as crianças notou que o
menino calçava uma sandália bem maior que o pé. Era criança e adulto. Éramos
nós.
quarta-feira, 13 de janeiro de 2016
Trator de alma
O trator pilotado pelos filhos passou e abriu sulcos no terreno da alma. Sementes foram plantadas e eu não sei de que tipo. Há uma indiferença superficial. Ou não? As pontas que machucam me levam ao passado. Eu era assim com os meus. Paga-se o preço. Espera-se a redenção. Sementes de ódio só sobrevivem com sementes de amor. Somos sempre como nossos pais, apesar de, durante um tempo, odiar aquilo e jurar por tudo quanto é sagrado que não seríamos assim com os nossos filhos. Somos. Por isso o sofrimento é maior – não há como mudar. Há como esperar que brote o afeto que não demos, mas sabemos existir. Então nos tornamos filhos dos nossos filhos. E eles pais dos nossos pais. Reza-se para que a foice não corte o roteiro. Por isso aguentamos o arado a nos dilacerar.
terça-feira, 12 de janeiro de 2016
porque não tem asa
De Paulo Leminski
Ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
aqueles que deixaram
que a mágoa nova
virasse a chaga antiga
ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é pão feito em casa
e que a pedra só não voa
porque não quer
não porque não tem asa
Ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
aqueles que deixaram
que a mágoa nova
virasse a chaga antiga
ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é pão feito em casa
e que a pedra só não voa
porque não quer
não porque não tem asa
Olhos na calçada
Apertei a tela e ele abriu os olhos. Deitado sob a vitrine de um shopping de bacanas. Papelão no chão. Fones brancos como se fosse um jogador de futebol. Corpo todo magro. Poucos dentes na boca. "Está fotografando por que?", perguntou. Eu não soube responder. Fui flagrado num dia de sol 40 graus, asfalto ali do lado fervendo, cidade fervilhando, de passagem para algum lugar com ar condicionado a toda, carteira protegendo o cartão de crédito para sacar e comprar algo. Respondi invocado, depois de um tempo: "Porque quis". Ele estava de boné e a composição com o fone e os fios brancos me atraíram. Mas foi só isso. Fiquei sem jeito, saindo, ouvindo xingamentos, xingando de volta, talvez imaginando o fiapo de gente vindo atrás, faca na mão, furo no fígado, vai saber... Os olhos. Ficaram os olhos que olhei mais tarde, à noite, deitado na cama, correndo o dedo na tela, procurando a imagem. Captei que alma ali?, me perguntei. A dele, sem nome, ou a minha, sem identidade?Depois daquele momento de decisão, a de clicar, a de responder, a de ir embora, pensei em voltar, em apagar a foto, em pedir desculpas, em perguntar por que ele deu aquele pulo e quase se levantou da cama. Não fui. Fiquei carregando a imagem para sempre, eu sei, porque mesmo que tivesse deletado, ela estaria presente. Não, não com pena porque era pobre, largado, deserdado, talvez alcoólatra como eu, mas porque houve o encontro. O que pensou de mim, um galalau de olhos verdes, careca, cem quilos, bem nutrido... Jamais imaginaria que estive perto de onde ele está, abandonando tudo por desesperança, por nada fazer sentido. Se fosse eu ali, na hora, e alguém a apontar o celular para o clique, o que faria? Talvez mandasse um beijo, se acordasse na hora. Talvez um murro na cara, uma cusparada, uma cabeçada no nariz. Nos incomodamos do nada. Acho que é isso. Por existir. Por não saber. A proteção. Queremos, sem ter. Não, não nos fotografem, não nos joguem na cara os erros, principalmente o de estar aí, na calçada, no Rio de Janeiro, no meio do tumulto, querendo sair para algum lugar que não existe. E o Cristo lá em cima, de braços abertos, pedindo paciência.
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