sexta-feira, 19 de dezembro de 2014
quinta-feira, 18 de dezembro de 2014
Alma inundada
No meio do mato do fim do mundo ele vivia. Criado como bicho, como se diz no Brasil pouco conhecido. Andou descalço até os vinte anos. A sola dos pés se transformou em casco. Nunca viu uma letra escrita. Sabia a letra falada e era poeta. Tinha delírios, como dizia a mãe, quando desandava a falar sobre bichos, árvores, rios, nuvens. Os olhos eram verdes. Às vezes dava vontade de chorar. Acontecia assim, do nada. Ele só sabia que sentia um aperto no meio do peito, subia para a garganta... E ele corria para um canto onde nem pai, nem mãe o viam. Depois voltava aliviado, olhava para os dois e sentia algo bom, mas não sabia o que era. Eles um dia morreram e ele foi embora. Chegou na cidade e viu uma barraquinha de churros. Achou estranho. Viu que as pessoas comiam aquilo. Pediu um. E tudo que ele tinha na alma desapareceu na inundação do doce.
quarta-feira, 17 de dezembro de 2014
M. de memória
De Paulo Leminski
Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
Que memória!
Lembrar, assim, vale a pena.
Vale a pena o desperdício,
Ulisses voltou de Tróia,
assim como Dante disse,
o céu não vale uma história.
um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
Mallarmé era tão pálido,
mais parecia uma página.
Rimbaud se mandou pra África,
Hemingway de miragens.
Os livros sabem de tudo.
Já sabem deste dilema.
Só não sabem que, no fundo,
ler não passa de uma lenda.
Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
Que memória!
Lembrar, assim, vale a pena.
Vale a pena o desperdício,
Ulisses voltou de Tróia,
assim como Dante disse,
o céu não vale uma história.
um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
Mallarmé era tão pálido,
mais parecia uma página.
Rimbaud se mandou pra África,
Hemingway de miragens.
Os livros sabem de tudo.
Já sabem deste dilema.
Só não sabem que, no fundo,
ler não passa de uma lenda.
Detonador
Parou de beber porque parou de beber. Estava morrendo. Não sabia disso pois quem bebe assim está no universo paralelo. Estoporou-se todo em brigas, batidas de carro, comas alcoólicos, prisões por desacato aos policiais, etc. Foi amarrado e internado. Ouviu uma palavra e a ficha caiu, como dizem os que conseguem puxar o freio e retomar o controle da carroça. Há quarenta anos estava se embriagando de água, suco e café. Decolou para a vida e o buraco do inferno para ele era uma lembrança apenas para se manter longe dele. Numa madrugada depois de um estafante trabalho, ao voltar para casa entrou num posto de gasolina e na loja de conveniência viu uma lata de energético diferente. Embalagem bonita, coisa da amazônia, com desenho de guaraná. Comprou. Estava gelada. Foi tomando de canudinho enquanto dirigia para casa. Achou o gosto forte. Entrou em estado de alucinação na estrada que o levava até a chácara onde morava nos arredores da cidade grande. Viu uma sereia sair de um brejo. Uma estrela cadente iluminou uma favela. Alguém o ultrapassou numa bicicleta a jato. No rádio do carro ouviu Hendrix cantando em português e Chico Alves berrando Simpaty for the Devil, acompanhado dos Stones. Conseguiu chegar em casa. Dormiu. No outro dia foi olhar a tal latinha. O teor de álcool era altíssimo. Ele se assustou. Telefonou para o psiquiatra. Ele disse que aquilo era normal e que só seria preocupante se no outro dia ele fosse atrás do mesmo detonador.
terça-feira, 16 de dezembro de 2014
Sonhador desprevenido
De Nelson Capucho
ninfas
mênades
sereias
surpreendem no quarto azul
o bêbado de cueca e meias
ninfas
mênades
sereias
surpreendem no quarto azul
o bêbado de cueca e meias
Gengivão
Ao abrir a boca e mostrar que ali não havia dentes, só gengivas, a plateia ficou atônita. Sempre acontece isso. Sobrevivo de palestras, ganho muito dinheiro, mas tenho medo de dentista e não quero usar perereca. Meu tema principal é saúde - e o paradoxo é que me faz famoso. Meu apelido é Gengivão. Não ligo. Mostro logo porque estou ali e, depois do primeiro impacto, vou ganhando tudo com a minha lábia. Sou mestre e, no fim, muita gente me aplaude e alguns, demonstrando intimidade, perguntam como consigo beijar as mulheres. Não respondo. O mistério faz parte do sucesso. Perdi os dentes porque me confundiram com um estuprador. Primeiro foi uma pancada com barra de ferro. Depois arrancaram o resto com a ponta de uma faca enferrujada. Eu não tinha nada a ver com aquilo. O anormal foi preso tempos depois e eu fiquei com a boca de molho durante um bom tempo, ou seja, tomando café de canudinho. Foi aí que tive a ideia das palestras. Não me perguntem como. Veio. E comecei a falar do quanto é fundamental tratar da saúde, a começar pela bucal, como dizem os dentistas. Sinto falta dos meus dentes, sim. Olho as fotos antigas e, às vezes, me vem à lembrança o quanto eles eram fortes para destrinchar uma picanha ou abrir garrafas. Mas isso é outra história. Estou pensando em escrever um livro sobre minha experiência, mas sempre adio a empreitada porque começo a rir assim que sento na frente do computador. O problema é que todo vez que acontece isso eu começo a babar.
segunda-feira, 15 de dezembro de 2014
retalhos de nós mesmos
De Wilson Bueno
Lancinantes os bicos-pássaros
Com que vos fura o túmido ventre
Já cadáver de nós e de nossa víscera
O que chamamos Amor, suas anáguas,
Festim de lírios, zumbir de abelhas
O que de Amor foi enlevo e até cansaço
– Mesmo o açoite e as costas em brasa? –
Se fomos um no Amor consorte
E hoje somos, Amor, retalhos de nós mesmos,
Pobres panos, chita, organdi, seda rala
E foi Amor, sim, que nos fez tão inimigos!
Lancinantes os bicos-pássaros
Com que vos fura o túmido ventre
Já cadáver de nós e de nossa víscera
O que chamamos Amor, suas anáguas,
Festim de lírios, zumbir de abelhas
O que de Amor foi enlevo e até cansaço
– Mesmo o açoite e as costas em brasa? –
Se fomos um no Amor consorte
E hoje somos, Amor, retalhos de nós mesmos,
Pobres panos, chita, organdi, seda rala
E foi Amor, sim, que nos fez tão inimigos!
Pátria mamada
Pátria mamada que me pariu! Como posso viver sóbrio nessa terra manguaçada, perdida, desvirtuada, estuprada, estapeada, esfaqueada, virada pelo avesso, cuspida, pisada, saqueada? Nasci no fundo de um poço de desejos, como disse um poeta, mas ao levar o tapa na bunda arregalei os olhos e comecei a ver em que inferno tinha me metido. Quis voltar para o útero, e nem os outros úteros que frequentei aliviaram a minha dor de ver tanta pobreza na riqueza jeca e tanta miséria na pobreza ignorante. Pátria mamada que me pariu! O que eu poderia fazer se não acompanhar o seu porre constante, burro, achincalhado, esculachado, escarrado, escancarado? Bebi álcool puro aos oito anos e me senti inserido no contexto. Foi como incendiar minhas veias, inchar o coração e começar a apodrecer o fígado para viver no universo paralelo que é sua realidade. Agora estou prestes a ser enterrado nas suas entranhas, minha pátria mamada - e peço desculpas pelo que não fiz, porque você não conseguiria ver, nem aprovar, nem nada.
sexta-feira, 12 de dezembro de 2014
quinta-feira, 11 de dezembro de 2014
Saudosa Amnésia
De Paulo Leminski
Memória é coisa recente.
Até ontem, quem lembrava?
A coisa veio antes, ou, antes, foi a palavra?
Ao perder a lembrança,
grande coisa não se perde.
Nuvens, são sempre brancas.
O mar? Continua verde.
Navalha
O lado mau dele aparecia apenas de uma maneira: quando lia notícias políticas. Fazia isso por dever de ofício, afinal, funcionário público, assessorava quem ele odiava ao ler as mentiras faladas, a desfaçatez, a cara de pau, a ladroagem travestida em ações para melhorar a qualidade de vida do povo. Era assim que vomitavam todos, quase sem exceção. E quando o lado mau dele tomava conta, ele abria uma gaveta onde, às vezes, um raio de sol que atravessava a persiana da janela da repartição refletia na lâmina da Solinger. Uma navalha, sim. Cabo de madrepérola, aço com largura suficiente para abrigar o desenho de uma caveira trespassada por duas tíbias, coisa que tinha visto num escudo pregado no braço de um policial. A ação era rápida. O corte, suficiente. O jorro de sangue imitava filmes de samurai. Pescoço. Carótida. Sempre acordava nessa hora. Não sabia como, depois da ação, resolveria o problema da sujeira. Mas tinha certeza que parte do problema da sujeira maior desapareceria com a lâmina cortando, cortando, cortando...
quarta-feira, 10 de dezembro de 2014
Microfone
Parou na frente da plateia e ficou quieto. Esperou o silêncio completo. O auditório da faculdade estava lotado. Ele era um especialista. Não sabia em que, mas o cartaz espalhado no campus, sim. Esperou mais. Todos olhando. Os professores que o ladeavam começaram a se mexer nas cadeiras. O microfone sem fio estava em sua mão direita. Ele esperou mais, esticou a expectativa até o máximo. Foi então que começou a falar. Disse que tinha perdido aquela noite de sexta-feira para atender ao convite do amigo que estava ao seu lado. Balançou a cabeça negativamente. Aí disparou uma pergunta: "E o que me dão assim que fico diante de vocês?" Os jovens universitários não entenderam nada. Também não falaram e nem perguntara o quê. Aí ele esticou o braço direito e mostrou o microfone que tinha um corpo preto e uma cabeça metálica bem saliente. Ao mesmo tempo, soltou um berro: "Isso!!". Todos caíram na gargalhada. Ele então lembrou do comediante Costinha e suas brincadeiras com todos os tipos de microfones/fálicos. Só depois começou a palestra.
terça-feira, 9 de dezembro de 2014
Sistema alucinógeno
O menino estava deitado no chão da sala. Apagado. Tinha derrubado uma xícara que estava ao lado. O café com leite fez uma mancha que, nos filmes policiais, sempre é um lago de sangue escuro. Ele foi ali a pedido da mãe, para tentar conversar com o rapaz. O guri tomava drogas alucinógenas desde os 13 anos. Aos 16, saiu da casinha, como se diz. Ele esperou o corpo acordar e viu que o cabelo estava cortado no estilo moicano. Brincou que invejava, mas não podia fazer aquilo pois a parte que era para ficar espetada já tinha ido embora há muitos anos. O menino era dócil, mas falava com uma energia que o visitante temia ver uma baba começar a escorrer e não parar mais. Foram para o quarto do garoto que amava LSD e cogumelos. A mãe tinha arrumado a bagunça. O menino usava o "tá ligado" para cada palavra de uma frase. Tinha abandonado a escola, procurava algo nas "viagens", disse. Ouviu o visitante revelar que nunca tinha tomado droga alucinógena porque morria de medo de não voltar. O guri não entendeu e contou que fazia aquilo para contestar o sistema. Ele ainda tentou uma última cartada dizendo que, depois que cortou todos os embalos, tinha ficado muito mais louco - só tomando água. O moicano insistiu na luta contra o sistema. O louco do H2O se emputeceu e vociferou que o grande pilar do sistema era a família - então perguntou para o guri porque ele não se mandava da casa, recusando ser sustentado pela mãe que lhe dava café com leite e bolachinha recheada quando voltava das viagens. O moicano se fechou, virou as costas, deitou na cama, se enfiou embaixo de um cobertor e cobriu a cabeça.
segunda-feira, 8 de dezembro de 2014
Opala na cara
Ficou bem humorado só depois de muita estrada da vida. Por isso gostava de contar a história de que tinha aparado um Opalão com a cara e a coragem. Bem, coragem regada a muita caipirinha e cerveja. Sua especialidade era lavar o carro todo sábado. Amava aquilo. Ou amava a trabalheira junto com a manguaçada. Enfim, a caranga ficava um brinco para a semana, porque até as rodas ele tirava para dar um trato ali por dentro. Foi numa dessa que aconteceu. Ergueu o baita com o macaco, tirou uma das rodas e, aí, depois de mais um gole, lembrou que durante a semana tinha ouvido um barulhinho estranho na máquina. Entrou embaixo para verificar. Achou a coisa. Pegou uma ferramenta e foi apertar. O macaco adernou, o carro caiu, quebrou-lhe o nariz e os dentes. Só não morreu afogado no próprio sangue porque alguém da família viu, pediu ajuda e o tiraram dali. A marca no nariz está lá. Alguns dos dentes ainda dão problema. Mas ele há muito tempo está bem porque só toma gasosa de framboesa. Talvez por isso todos que ouvem o episódio acreditam mesmo que ele aparou o Opalão com a cara - e que a coragem vinha da cachaça.
sexta-feira, 5 de dezembro de 2014
quinta-feira, 4 de dezembro de 2014
Quindim
De Dalton Trevisan
Só de vê-la — ó doçura do quindim se derretendo sem morder — o arrepio
lancinante no céu da boca.
Depois de Orlando Dias
Sempre foi macaca de auditório. O termo seria mais politicamente incorreto se ele dissesse que era macaco de auditório. Ninguém iria entender nos tempos de hoje. Mas ele era isso mesmo. Frequentava os auditórios das rádios que tinham programas ao vivo. Concorria com as mulheres, alucinadas, que gostavam de rasgar as roupas dos cantores. Um dia guardou seu maior troféu: o lencinho que Orlando Dias tirava do bolsinho do paletó ao final das interpretações e agitava para a platéia dizendo "Obrigado minhas fãs!" Ele era "o" fã, mas entendia a generalização. O tempo passou, os programas e os artistas foram para o vinagre - e ele baixou o fogo passando o dia todo de pijama em casa, mas sempre relembrando aquele passado cada dia mais passado. Até que um dia esqueceu tudo por causa de uma mulher. Artista, claro. Nunca a chamou pelo nome, apenas pelo personagem daquele filme: Malena. Soube que ela, italiana, veio morar no Rio de Janeiro. Foi atrás. Descobriu o endereço. Um dia a viu de longe e ficou contente. Teve medo de chegar perto, apesar de Malena estar tranquilamente fazendo compras num mercadinho. Mas voltou de lá com uma recordação. Conseguiu o capacho da entrada da casa. Agora tinha o lencinho do cantor e o capacho dela. Este ficava ao lado da cama. Antes de dormir, como num ritual, ele o abraçava e cheirava. Então, de olhos fechados, via a personagem andando por uma calçada a beira-mar. Sussurrava o nome e só então dormia em paz.
quarta-feira, 3 de dezembro de 2014
Último domicílio conhecido
De Miguel Sanches Neto
Habitar a sombra
sem janelas de sol.
Residente e domiciliado
no impreciso, no intervalo,
na entrelinha, no avesso,
o poeta não dispõe de endereço.
Procurado no último
domicílio conhecido,
só encontrarão palavras.
O poema estará vazio.
Morar o poema
apagando pegadas.
Urubu
O urubu pousou na vida dele de uma maneira estranha. Foi ao abrir a persiana do escritório. Ele estava lá, do outro lado da rua, como um rei negro no topo do sobrado do vizinho. Não havia mais nenhum nem ali nem sobrevoando. De vez em quando batia uma brisa e as asas dele se abriam - e ele ficava mais majestoso. À distância parecia jovem. Estaria perdido? Nunca ele tinha visto urubu naquele pedaço da cidade onde filé mignon é comum no prato dos moradores. Claro que pensou na carniça. Mas, onde estaria? Na vizinhança um dia morou alguém que foi parar nas páginas policiais por roubo do dinheiro público, mas isso é outra história. O urubu ficou lá o dia inteiro, lindo, silhueta negra contra o céu azul ou algumas nuvens que ali passavam. Ele ficou observando. Pensou em fotografar mas... Pra que? Há certas cenas, momentos, visões, que é melhor guardar para sempre. O urubu, pensou o observador, deveria ser a ave símbolo do Brasil. Para o país ficar sempre limpo.
terça-feira, 2 de dezembro de 2014
Borboleta
De Emiliano Perneta
Hoje, uma borboleta, assim, toda amarela,
Veio bater aqui junto à minha janela.
Olhei. Ela passou. Eu comecei a olhar.
De novo ela passou e tornou a passar,
Tão veludosa e ao mesmo tempo tão inquieta...
Que quereria pois aquela borboleta?
Ia e vinha outra vez, doida, a se debater,
Com ademanes, com trejeitos de mulher...
Era um dia de sol, fino e voluptuoso,
De um grande beijo ideal, de um infinito gozo,
De um lindo céu azul, esplêndido verão,
E ela a roçar em mim, como uma tentação...
E ela a passar aqui, dentro do seu corpete,
Tão leve, tão sensual, no seu andar coquete,
A subir, a descer de tal modo, Senhor,
Que a mim me pareceu, mas sem tirar nem pôr,
Essas que andam de lá p'ra cá, coquetemente,
À noite, nos jardins, a seduzir a gente...
Hoje, uma borboleta, assim, toda amarela,
Veio bater aqui junto à minha janela.
Olhei. Ela passou. Eu comecei a olhar.
De novo ela passou e tornou a passar,
Tão veludosa e ao mesmo tempo tão inquieta...
Que quereria pois aquela borboleta?
Ia e vinha outra vez, doida, a se debater,
Com ademanes, com trejeitos de mulher...
Era um dia de sol, fino e voluptuoso,
De um grande beijo ideal, de um infinito gozo,
De um lindo céu azul, esplêndido verão,
E ela a roçar em mim, como uma tentação...
E ela a passar aqui, dentro do seu corpete,
Tão leve, tão sensual, no seu andar coquete,
A subir, a descer de tal modo, Senhor,
Que a mim me pareceu, mas sem tirar nem pôr,
Essas que andam de lá p'ra cá, coquetemente,
À noite, nos jardins, a seduzir a gente...
Sou ladrão!
Sou ladrão, sim - e daí? Ninguém nunca me pegou. Sou o rei dos caras de pau. Claro que tenho um mandato parlamentar. E faz tempo! Tanto que, se bobear, ainda terei forças para colocar meu bisneto na quadrilha. Não tenho vergonha do que faço. Roubo algumas quirelas do orçamento. Tem gente que rouba muito mais. Todo mundo rouba, disso tenho certeza. Sempre fui modesto. Me contentei em ficar com uma parcela do que se transformou em beneficio para o meu povo. Meu povo que vota em mim. Meu povo da família vai muito bem, obrigado. No começo fiquei meio sem jeito para fazer a coisa. Depois, me acostumei. Dinheiro fácil. Me conformei com a história do nosso país. Sempre foi assim, desde que os portugueses mandaram os criminosos povoarem a terra que tudo dá. E como dá! Faço meu serviço direito. Engano a todos com discursos patrióticos e que pregam a honestidade. Para os outros. Não sou honesto. Sou honesto comigo mesmo pois me convenci de que dinheiro traz felicidade. Inventaram aquela lorota que diz ao contrário só para manter a bugrada mansa e na miséria. Sempre sou financiado por quem tem muito mais que. É que eles ganham ainda mais com o trabalho que faço para eles. É o jogo. Sou humilde, mas só gosto de ficar em hotel de muitas estrelas quando viajo para a Europa. Miami é coisa de novo rico cucaracha. Sou um velho ladrão. Ostento apenas lá fora, onde ninguém me conhece. Aqui, se pudesse, andava de Fusca, feito o uruguaio que liberou a maconha. Agora tenho de parar essa confissão. Porque vou queimá-la. Faço isso para desopilar. Isso e a missa que vou sagradamente todo domingo. No sábado me confesso. No dia seguinte, comungo. Para ficar pronto para os roubos da semana. Rezo para morrer num domingo. Eu acredito que exista o céu.
segunda-feira, 1 de dezembro de 2014
GATO NATO
De antonio
thadeu wojciechowski
gato, que pulo é esse que
extrapola?
se não tivesse visto estaria cego
mas vi um dorso no ar entrar de sola
e se agarrar como à madeira o prego
se não tivesse visto estaria cego
mas vi um dorso no ar entrar de sola
e se agarrar como à madeira o prego
tem flexibilidade de uma bola?
sai pra lá, satanás, que eu te arrenego!
de mansinho, a mágica também rola
e eu cuido estar pegando-o e não pego
sai pra lá, satanás, que eu te arrenego!
de mansinho, a mágica também rola
e eu cuido estar pegando-o e não pego
toda a mística de sua alquimia
me assusta pela indiferença intensa
que só sinto ao ouvir enquanto mia
me assusta pela indiferença intensa
que só sinto ao ouvir enquanto mia
no que será que ele tanto pensa?
ao me ver – como um rei, atende o súdito:
sua resposta é sempre um gesto súbito
ao me ver – como um rei, atende o súdito:
sua resposta é sempre um gesto súbito
Amigos mortos
Não acontecia sempre, mas ele via. Ele via seus mortos queridos em corpos de outras pessoas depois que os amigos partiram para sempre. Via também em nuvens, como naquele dia em que estava indo para a praia e parou no acostamento para conversar com o Julio. Ultimamente tem visto muito o Pedro. Agora mesmo, quando saiu do banco, onde foi pegar um dinheiro para pagar a diarista, lá vinha o Pedro do mesmo jeito do Pedro, só que num corpo mais mirrado e parecendo falar com as pedras das calçadas. Era ele, teve certeza. Passou perto, sentiu a força estranha que no passado os uniu em amizade, gosto pelas mesmas mulheres, música e literatura. Ficou feliz por ter visto bem de perto. Da outra vez ele estava muito longe e não deu para olhar direito. Então, chegou em casa radiante por saber que o Pedro está muito bem – assim como o neto do Pedro, que também é Pedro, mas não se parece nada com o avô.
sábado, 29 de novembro de 2014
sexta-feira, 28 de novembro de 2014
Doença noticiosa
Não sabe como começou a ficar doente. Não sentia dor, mas a cada dia tudo ia perdendo a cor, interesse, brilho. Foi a todos os médicos possíveis e fez os exames. Nada! Psiquiatras, psicólogos, pais de santo, padres, pastores, ninguém conseguia identificar a origem daquilo. Um dia, descobriu. Foi por acaso. Tinha o costume de acompanhar o noticiário do Brasil e do mundo nos jornais impressos que assinava, nos sites, nos informativos de rádios e televisões. Por esquecimento, deixou de ler as páginas que chegavam de madrugada no jardim acondicionadas num saco plástico transparente. Quando se deu conta, estava mais esperto. Não ligou o computador, manteve o rádio mudo e a televisão como um quadro negro na parede da sala – para testar. Se sentiu tão bem, tão vivo, tão radiante, que foi dar uma volta na quadra e viu o quanto estavam belos os jardins dos vizinhos e as árvores das ruas. Sorriu e decidiu que nunca mais iria acompanhar as desgraças do mundo em forma de notícias. Só não contava com o telefone. No dia seguinte, logo cedo, um amigo ligou: “Viu que foi preso?”
quarta-feira, 26 de novembro de 2014
A voz
Foi um técnico em computação que deu para ele o fone de ouvido zero bala. Dentro da caixa. Coisa simples, falou o sabichão, depois de limpar a máquina e lhe cobrar uma dinheirama pela visita. Ele esperou o malaco sair, enfiou os plugs nos buracos e, quando quis ouvir Vicente Celestino cantando Noite Cheia de Estrelas e Silvio Caldas interpretando Velho Realejo, surgiu uma voz que era mais doce do que a da Iris Letieri nos aeroportos. Não distinguiu as palavras saíam da boca de uma mulher ou homem - e isso não importava. É que eram ordens: para que procurasse certos endereços na internet, se comunicasse com algumas pessoas, enfim, eram determinações que ele obedecia mesmo sem querer, porque seus dedos trabalhavam automaticamente a Remington, como ele chamava o seu PC. Não havia nenhuma conexão entre tudo o que via, ouvia e escrevia. Até o dia em que a voz ficou um tempo sem falar através dos fones. Ele se preocupou. Estava acostumado. Então, depois de um longo silêncio, ouviu:"É isso" - e nunca mais a escutou.
terça-feira, 25 de novembro de 2014
A procura
Deu um treco nele. Na verdade, o treco foi aparecendo lentamente, como em ondas de flashes de lembranças do tempo em que era adolescente e não sabia qual o rumo na vida ia tomar. Foi nessa época que, forçado pelo pai que sonhava em ver a carteira de trabalho dele assinada, foi a uma dessas agências oficiais de emprego. Preencheu uma ficha enorme onde a única experiência que colocou foi a de ajudante num boteco de bairro, onde servia mais cachaça do que refrigerante. Claro que nunca foi chamado para nada, mas aquilo começou a tomar conta dele cinquenta anos depois. A sensação da inutilidade, da névoa a impedir que visse ou sentisse alguma coisa que o levasse a uma profissão ou trabalho qualquer. E o lugar colaborava - era estranho, um prédio velho com funcionários que pareciam múmias pedindo descanso. Depois disso ele se perdeu na vida, mas encontrou um caminho profissional que nunca imaginou - e só soube que era aquilo mesmo depois de velho, coisa que hoje o faz rir. Mas aquela sensação do começo, da procura pelo que não sabia... ainda dói muito no seu peito.
Ó, céus
De Roberto Prado
nenhum pio
nada de nuvens
não há azul
ó, céus!, que são tantos,
que cada um tem o seu
e ainda tem quem não veja
quando a gente cai do céu
segunda-feira, 24 de novembro de 2014
Na frente do cemitério
O soldado enfiou o cano da metralhadora pela janela do carro e a ponta ficou perto da têmpora dele. Minutos antes, no meio da madrugada, tinha feito uma lambança com o carro onde aprendia a dirigir. Quase bateu de frente num táxi - que teve de subir na calçada em frente a um cemitério. Ele pisou fundo porque sabia que o taxista poderia vir atrás. A mulher que estava ao lado apoiou. Não contavam com a barca negra lotada de meganhas vestidos de preto que estava logo atrás e imediatamente ligou a sirene. Ele parou para não ser metralhado. Não tinha habilitação, dirigia de sandália, mas também não bebia. Pediu para o soldado chamar o comandante da tropa. Veio o sargento. Ele mostrou uma carteirinha de oficial. De verdade. O sargento bateu continência, mas recomendou à mocinha que assumisse o volante. Ela fez isso. Mais tarde, já em casa ele tirou de dentro da cueca uma pacoteira de cannabis que carregava por ter comprado antes da aula - e foi dormir aliviado. Naquela noite ele não fumou.
sábado, 22 de novembro de 2014
quinta-feira, 20 de novembro de 2014
LSD
Nunca lhe saiu da cabeça o sonho da geração que se dizia de paz e amor. Um sonho não concretizado porque os que estavam prontos para executar o projeto foram presos. Eles queriam que toda uma cidade viajasse com eles. Viagem de LSD, que seria colocado em grande quantidade no reservatório de água que abastecia São Francisco, na Califórnia. A única Califórnia que ele conhecia era uma vila na Zona Leste de São Paulo. Mas a droga sintética... ah, essa ele conhecia sim. Mas nunca tinha experimentado - porque tinha medo de alucinógenos. Contradição? Não pensava nisso. Lembrava apenas da história dos anos 60 e, por isso, começou a juntar pontos, micropontos e selos da droga sintética. Quando achou que tinha quantidade suficiente de pirar toda a cidade careta, foi ao reservatório. No meio de uma madrugada fria. Antes de jogar a droga, levou um tiro na nuca. Caiu na água. O LSD se espalhou. Nos dias seguintes não houve nenhuma alteração no comportamento dos moradores da metrópole. Eles já estavam alucinados há muito tempo.
quarta-feira, 19 de novembro de 2014
Penúltima
De Marcos Prado
- Como posso agora estar alegre?
era de se esperar que eu desesperasse
talvez mais tarde eu desintegre
entre o penúltimo gole do último porre
e leve ao meu lado os que me seguem sim,
perdi a razão do que eu achava e do que eu acho,
mas aprendi que o céu é mais embaixo
ainda não sei o quanto dei
a tantas quantas amei
ainda não sei ao certo se eu errei
Herói
Fez esforço para colocar o nome no diminutivo porque sabia que seria quase um anão. Os pais eram assim. O que não sabia é que também teria um caráter de rodapé, mesmo porque era inseguro e achava que se prestando a bandalheiras poderia ganhar respeito. Antes se enveredou pelos caminhos da política. Aproveitou a ingenuidade aloprada para tentar derrubar o regime dos gorilas. Nem chegou a ser preso. Foi logo dedurar os companheiros que falavam em camponeses ao tratar de seres perdidos que viviam no mato. Não sofreu ao saber das torturas e dos assassinatos nos porões. Estava já no estágio de rato de esgoto - por isso usava salto alto para crescer alguns centímetros. O tempo passou, ele foi se esgueirando pela vida, enganando aqui e ali até se tornar funcionário público. Vagabundo, claro, mas dedicado. Ia todo dia à repartição, sentava a bunda na cadeira, não fazia nada e voltava para casa a fim de tomar sopa de lata, que gostava fria. Durante o expediente reclamava do governo da hora e do salário. Contava os dias para aposentadoria. Ela chegou. No mesmo dia ele esticou as canelas. Foi saudado como herói da resistência.
terça-feira, 18 de novembro de 2014
Dinheiro
Uma das melhores cenas de filme que tinha visto foi na abertura de um longa japonês, em preto e branco, em que durante muitos minutos a telona se enchia com um jovem dirigindo um carro e jogando dinheiro pela janela ao sabor do vento. Ali se resumia uma das facetas do caráter do personagem. Talvez aquilo tenha penetrado na sua alma de adolescente, porque ele jamais ligou para o vil metal, o papel fedido, como gostava de chamar. Sim, ganhava o suficiente, mas tirando os livros que comprava e uns panos para cobrir o corpo, distribuía o resto entre quem precisava da família ou alguns desconhecidos que encontrava na rua ou em shoppings e achava que necessitavam muito mais que ele. Uns se espantavam, outros ficavam mudos, poucos agradeciam - mas ele não ligava para isso. Um dia foi surpreendido com a visita de um estranho. Trazia uma bolsa enorme cheia de notas de cem dólares. Contou que sabia o que ele fazia e queria ajudar na distribuição, porque tinha muito além da conta. Era um miliardário, herdeiro cuja fortuna não parava de crescer a cada dia. Ele agradeceu, se despediu, pegou aquela dinheirama e foi para o alto de um edifício na rua mais movimentada da cidade. Subiu, abriu a sacola e, ao olhar o rosto de Benjamin Franklin, jura que este piscou para ele. Fechou a bolsa. Alugou um jatinho e foi para o Oeste do México, mais precisamente para San Andrés, naquela ponta saliente do mapa. Ali não deu um puto de um tostão para ninguém - e se transformou num avarento feliz.
segunda-feira, 17 de novembro de 2014
Navegante
De Helena Kolody
Navegou
no veleiro dos livros.
Desembarcou
e conferiu.
E o mundo que viu
não era o que imaginou.
Navegou
no veleiro dos livros.
Desembarcou
e conferiu.
E o mundo que viu
não era o que imaginou.
Catarina
Acordou com saudade da Catarina. Foi seu primeiro carro. Ele batizou assim porque, para ele, era muito parecida com uma carroça. A Catarina era uma perua Variant de faróis retangulares. Comprou da sogra e ficou dirigindo-a por cinco anos sem ter habilitação. Foi com ela que passou o maior sufoco na estrada ao ver parar de funcionar o limpador de para-brisa numa noite de muita chuva - e na subida de uma longa e perigosa serra. A sorte é que era final de férias e o trânsito intenso. Guiava-se pelas lanternas traseiras dos carros. Não podia parar. O filho pequeno estava adoentado e precisava chegar em casa. Chegou. São e salvo. A Catarina também. Nunca bateu em outro carro. Só num poste. Foi no tempo em que ele passou a se afundar em álcool. Destruiu o carro totalmente. Ela foi para o ferro velho. Ele acompanhou durante anos o desmonte do que sobrou. Sempre fez um sinal da cruz ao vê-la. Hoje anda de carrão com alta tecnologia embarcada - e morre de saudade dela, a Catarina querida.
sexta-feira, 14 de novembro de 2014
quinta-feira, 13 de novembro de 2014
Parte de Manoel
Ele leu e se sentiu o prego usado, enferrujado e torto mais importante do mundo. Ele leu e agora era o pente jogado num terreno baldio e onde bichos passavam sem ao menos cheirá-lo. Ele leu e era pedra falante, era olho globo terrestre de bicho, era o canto a proteger a mata, o rio a invadir silêncios, o menino a entender o andarilho louco, o sapato a caminhar sozinho na floresta. Ele leu porque aquela poesia um dia vai chegar a todas as almas, porque era uma invenção da invenção do invento. Ele leu porque aquilo lhe deu a exata dimensão do nada que todos somos – daí as palavras para dar uma forma a tudo. Ele leu porque o poeta entrou pelo outro lado e desinventou – para tirar essa armadura. Ele leu e se fez parte.
quarta-feira, 12 de novembro de 2014
Influenciável
Era influenciável, como um dia ouviu alguém sentenciar. Era mesmo. Ficou com aquilo como uma sombra por dentro e por fora a lhe seguir na caminhada. Lia muito e cada herói escritor que lhe abria as portas através de uma biografia, era como se ele sofresse tal qual. Por isso ao entrar na vida de Chandler, Ray, para os íntimos, viu o pai alcoólatra esgarçando o tecido da convivência com a mãe, as cenas de violência, as mudanças de estado, a ida para a Irlanda, depois para a Inglaterra, os estudos dos clássicos. E tudo isso sob o olhar de Marlowe, o detetive que o escritor criaria anos mais tarde e se tornaria Humprey Bogart para sempre. O álcool também entrou na vida dele, como a do seu ídolo. O álcool também entrou na vida do pai dele, como no pai do ídolo. Só não houve a violência, não houve Estados Unidos, Europa, colégios onde o mundo se abria. Era brasileiro. Misturou tudo, influenciável que era, e se salvou, criando o próprio personagem.
terça-feira, 11 de novembro de 2014
Comum
A poesia demorou a fazer sentido para ele. Ok, podem chamar de embotado, mas foi assim mesmo que aconteceu. Começou a ler tarde, porque traumatizado na escola com a imposição da Pata da Gazela. Aquilo ficou atravessado; e a coisa piorou com Meu Pé de Laranja Lima. Pior era ter de escrever sobre o livro. Algo como o famoso relato das férias em composição pedida pela senhora de cabelos brancos, coque e um colar de pérolas falsas. Ele que nunca viajava, passeava, porque a família era pobre demais. Quando pode se livrar, sentia uma coisa ruim ao ver um livro - e se afastava. Até o dia em que não se lembra mais como aconteceu - e a partir daí mergulhou em todos os romances, menos os dos mestres, os clássicos, porque passou a dizer que estava se preparando para eles. A poesia ficava de lado, mas um dia que fez sentido - ou melhor, ele sentiu. Quando? Importa? Foi o deslumbramento tomando conta. E aí ficou parecendo o personagem do livro de Stephen King, que virou filme, para variar, aquele do negão que sente todas as dores do mundo e consegue aspirar com a boca a doença da mulher do diretor da prisão onde estava enjaulado. Queria todas as poesias do mundo, para que mergulhassem nele - inclusive as concretas. Assim, descobriu que tinha limpado parte dos entulhos da alma. E também veio a certeza de que não poderia cometer poesia - por ser humano comum.
segunda-feira, 10 de novembro de 2014
Canção de ninar
A concha gigante estava em cima do frigobar. Na frente dela, uma folhinha Seicho-no-Ie dizia que salvando o próximo, com certeza você é o maior beneficiado. Ele abriu a porta e viu a garrafa de vodca. Abriu a tampa e virou num gole que demorou uma eternidade. Estava sozinho no mundo e tinha salvo uma infinidade de pessoas que cruzaram seu caminho. Ele mesmo… Perdeu tudo, ou seja, perdeu a capacidade de amar o próximo – por isso arrancou Cristo da cruz e o jogou num rio/esgoto depois que lhe tiraram um filho estupidamente. Nem bala perdida. Tiro por vingança. Ele não sabe de que, porque jamais cometera algo pesado contra alguém. O filho era um anjo em forma de gente. Único, fruto de uma noite louca num passado distante onde ele e a mãe, que sumiu no mundo, beberam e se encontraram no entorpecimento. Por isso voltou a se embriagar por não ter coragem de se matar, apesar de tentar. Pegou a concha. Colou o ouvido. Ouviu uma canção de ninar. Levou-a para a cama. Dormiu com a música. Era o menino cantando.
sexta-feira, 7 de novembro de 2014
quinta-feira, 6 de novembro de 2014
O inferno
O inferno somos nós, não os outros. Cada um tem o seu, particular, porque o demônio toma conta e não há água benta no mundo, ou benção do Papa, ou oração ao Menino Jesus de Praga, ou confissão e comunhão com meia dúzia de hóstias, ou descarrego no terreiro, ou a mão na cabeça do pastor evangélico, enfim, não há nada que o tire quando se instala. Ele pensou em tudo isso naquele dia da semana em que quase tudo deu errado, a começar pela quina pontiaguda da cama que atacou exatamente o ponto onde reconstruiu o tendão que liga os músculos da coxa ao joelho direito. Foi assim que saiu do mundo aparentemente normal que vivia - e foi se arrastando pelas labaredas do dia, onde os outros sobreviviam como sempre - mas ele, não. Porque cada palavra, cada olhar, cada interpretação que dava ao que entrava no ser era pesada demais. Até o cachorro da vizinha, para ele, merecia uma bola de carne com veneno para parar com seu latido esganiçado antes de o galo cantar, galo este que não existia na vizinhança, mas ele jura que também ouviu um, doido, às três da manhã. Depois teve de entrar em engarrafamentos, viu a temperatura da água do carro velho subir a ponto de explodir tudo... Pensou que seria melhor assim, se fosse um carro-bomba, para sair daquilo e ir direto para o... Enfrentou a burocracia oficial em busca de documentos perdidos, notícias dos casamentos anteriores, um parente no hospital, olha ali o seu guarda te multando. À noite, tomou um banho quente e quase virou um animal sem pelo nenhum porque o aquecedor despirocou e um jato fervente lhe caiu nas costas. Foi dormir. Sonhou que teve um sonho. Acordou de volta ao inferno dos outros. Não o seu. Passou rente à quina da cama. Jura que viu ela mandar um beijinho para seu joelho.
quarta-feira, 5 de novembro de 2014
terça-feira, 4 de novembro de 2014
Cadáveres
"Não sei como vocês conseguem comer cadáveres". Ele ouviu isso de um menino uruguaio que estava internado na clínica psiquiátrica. Todos ali, de alguma forma, tinham surtado no mundo normal. Ele mesmo tinha chegado ali num charuto, ou seja, enrolado e imobilizado em faixas, porque chegou em casa de madrugada e destruiu com um machado a tv que estava ligada na sala. A mulher pensou que iria assassinar a família toda - por isso pegou os filhos e saiu correndo para a rua e pediu socorro. Não adiantou ele explicar que não era nada daquilo, que seu ódio era contra a televisão e a merda que espalhava. Foi contido. Não resistiu. Doparam-no e ele ficou do jeito que era: calmo. Comer cadáveres! O gringo falou aquilo no dia em que, raro, serviram bife para os pacientes. Alguém então disse que aquilo era de soja. O menino ficou mais possesso. Invadiu a cozinha, pegou uma faca, cortou a palma de uma mão e começou a beber o próprio sangue. Os olhos deles estavam esbugalhados. Eram bonitos. Verdes. Um dia os dois saíram daquela prisão de muros altos. O uruguaio sumiu no mapa. Ele ficou por aí, sempre lembrando dos cadáveres, mas pedindo carne mal passada para comer.
segunda-feira, 3 de novembro de 2014
Gourmet
A onda gourmet chegou à casa dele. Uma filha disse que iria preparar um sanduíche especial. Ele ficou na dele, esperando do quarto o chamamento para a degustação. O espaço gourmet era uma cozinha cujo fogão estava prestes a matar os ocupantes da casa. O vazamento de gás era terrível. Os armários se esfarelavam. O microondas era do tempo em que se colocava lenha para fazê-lo funcionar. Ouviu uma barulheira. Ela era assim mesmo. Quando foi chamado, quase não enxerga nada no espaço gourmet, tal a quantidade de fumaça. Mas como tudo era moda, comparou a coisa ao fog londrino. Foi para a mesa. Ela não trouxe um sanduba, mas um prédio com vários andares. Ele comeu tudo. Estava muito bom. Quando acabou – e ficou triste e com a barriga estufada, veio outro. Não quis decepcioná-la. Este era maior, com os três tipos de queijo, ovos, bacon, cebola frita, maionese especial, etc. Terminou e se arrastou até o banheiro. Se olhou no espelho. Pensou que iria ter um enfarte. Voltou para a cozinha. Ferveu água e fez um chá de boldo bem forte. Uma dor embaixo do seio direito incomodava-o. Dormiu assim mesmo. No outro dia, mais chá de boldo. No meio da manhã foi ao banheiro e lembrou de uma descrição de Ronald Golias sobre os tipos de produto interno bruto produzidos pelo ser humano. Aquilo que tinha feito não se enquadrava em nenhum deles. Deu a descarga, gastou um tubo de Bom-Ar para não incomodar o bairro e foi dar uma caminhada. Mais tarde a filha perguntou se ele toparia nova experiência. Ele perguntou o que ela pretendia fazer. “Buchada de bode”, respondeu a menina. Ele foi educado e disse que não estava se preparando para ser candidato à presidência do Brasil.
sexta-feira, 31 de outubro de 2014
quinta-feira, 30 de outubro de 2014
Nos enterros
Gostava de ir a enterros. De qualquer um. Conhecido ou não. O motivo não era mórbido. É que tentava entender porque na hora em que o caixão baixava, ou quando começavam a jogar terra em cima, ou quando uma tampa de cimento fechava a chamada última morada, sempre tinha alguém gritando “eu quero ir junto!” – ou algo parecido. Mas ninguém ia. De tanto ver isso, começou a bolar um plano para satisfazer o desejo dos vivos. Esperava o defunto ser comido pelos vermes, sequestrava a/o escandalosa/o, dopava e enterrava junto ao ente querido. Um dia morreu sua amada. No enterro ele também gritou que queria ir junto. À noite foi ao cemitério e se enterrou – para pagar os pecados.
quarta-feira, 29 de outubro de 2014
Perto do osso a carne é mais gostosa
De Paulo Leminski
Sossegue coração
ainda não é agora
a confusão prossegue
sonhos a fora
calma calma
logo mais a gente goza
perto do osso
a carne é mais gostosa.
Mandacaru
O pai lhe entregou uma caixinha de madrepérola no leito de morte. Disse para ele só abrir passados dois anos do enterro. Obedeceu. Até imaginou ser alguma pedra preciosa, ou um bilhete com declaração de amor nunca foi feita. Não era nada daquilo. Um espinho grande estava acomodado sobre um veludo preto. Embaixo do pano, duas palavras: cegou Lampião. Lembrou da história que o velho sempre contava. O bandido/herói perdeu a visão de um olho por causa de um mandacaru na caatinga. Durante um tempo ele abria a caixa e olhava o espinho. Até que um dia teve uma ideia que não sabe de onde veio. Engoliu o tal acomodado dentro de um bombom Sonho de Valsa. Logo depois sentiu uma pontada. Imaginou que o espinho tenha se instalado em alguma parte do seu aparelho digestivo. Na primeira crise de raiva que teve, a dor naquele local foi imensa, parecia que estava sendo furado de dentro para fora por um punhal. E ele saiu quebrando o que lhe parecia ser inútil - de objetos a pessoas. Ficou assim durante anos, até que a dorzinha e a dorzona passaram. O espinho tinha ido embora. Pouco tempo depois a fossa da casa explodiu.
terça-feira, 28 de outubro de 2014
De cotonete
Nunca esqueceu o personagem de Agildo Ribeiro que, machão total, desmunhecava todo ao introduzir um cotonete no ouvido direito. Achava engraçado, mas ficou preocupado no dia em que ficou em frente ao espelho e fez o mesmo. O efeito foi ao contrário. Ele virou um bicho tão feio, mas com a mesma aparência humana, que a primeira coisa que fez foi esmurrar a imagem refletida, transformada então em várias com o estilhaçamento. Notou que não sentiu dor na mão - e isso o incentivou a fazer um teste com o vizinho que considerava inimigo. Apertou a campainha, o outro apareceu com cara de quem está a fim de brigar por nada. Ele imediatamente sacou um cotonete do bolso, encaixou no ouvido, girou e, quase que automaticamente, o golpe com a mão encaixou no queixo do infeliz, que desabou feito o Maguila depois do coice que tomou do Holyfield. Tirou o cotonete, voltou para casa e depois ouviu a sirene da ambulância que veio buscar a vítima. A sorte é que ninguém viu. Como gostou da experiência, saiu distribuindo porrada em skinheads, integrantes de torcidas uniformizadas, policiais torturadores, ladrões oficiais ou não. Até o dia em que foi mexer com um fiapo de gente que tomava um copo de leite numa padaria. Tinham lhe informado que era um serial killer. Ele acreditou. Ao chegar perto, colocou o cotonete e, antes da viradinha, levou um tapa bem na orelha da transformação. Uma radiografia feita horas depois mostrou a ponta do cotonete encaixada numa parte do cérebro - e sem possibilidade de ser removida sob risco de morte instantânea. Ele sobreviveu, com lucidez, mas jamais conseguiu reverter o desmunhecamento na direita e na esquerda.
segunda-feira, 27 de outubro de 2014
A cadela e as unhas
O pulmão falhou e ele foi parar na UTI. Uma semana ali, no oxigênio, ouvindo gritos de dor, vendo e sentindo a enfermeira com cara de criança passar duas horas para achar uma veia a fim de coletar sangue. Saiu e, na recuperação, começou a pedir coisas. Uma delas é que gostaria de ver e ser visto pela cadela de estimação pela internet. Ainda não se sabe qual seria o diálogo. Quis também o cortador de unhas e deu as indicações de onde encontrá-lo no armário do banheiro da suíte onde dorme sozinho, pois viúvo é. Quem foi procurar começou a rir sozinho ao ver o aparelho de metal, daqueles grandes. Estava dentro da embalagem original e, num canto, estava escrito, na primeira pessoa, que quem o tirasse daquela "casinha" de plástico transparente tinha de devolvê-lo. O enviado especial para a missão riu porque, naquele banheiro, ninguém da casa entrava, apenas o animal. Ao entregar o cortador, perguntou para o dono: "A cadela já sabe ler?" Diante do espanto do outro, completou: "Porque só ela é que entra ali e, por enquanto, ninguém viu o animal cortando as próprias unhas".
sexta-feira, 24 de outubro de 2014
quinta-feira, 23 de outubro de 2014
No filme, na mata
Os olhos do garoto olhando para o céu e morrendo lentamente encantaram. O ônibus abandonado no meio do nada, longe de tudo e de todos. Era um filme, mas baseado em vida real. Ele resolveu que faria o mesmo. Não por causa das outras pessoas. Por causa dele mesmo, que não aguentava as outras pessoas. Não houve tarja preta que o aprumasse. Resgatou a mochila de lona verde comprada anos atrás numa loja de material para militares. Não colocou nada dentro - e foi. De carona, como nos tempos de Woodstock ou, para ficar no país, de Águas Claras. Chegou a uma reserva da Mata Atlântica e se embrenhou. Claro que não iria achar um ônibus abandonado, mas depois de três dias avistou uma barraca tipo iglu no alto de um morrote. Foi até lá. A vista era linda. Ele abriu o zíper da casinha. Havia dois esqueletos abraçados. Estavam dentro de um saco de dormir. Ele encostou-os num canto e deitou ao lado. Não teve medo. Só ficou pensando em quanto tempo chegaria àquele visual. Escureceu. Uma chuva fina caiu.
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