quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Perdido

Perdi o trem, o rumo, o prumo, o sumo, o trilho, a trilha, a mira, a ira, o sono, o encanto, o canto. Perdi sem achar. Amanhã pode ser.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Severino Araújo e a Orquestra Tabajara


tic tac

De Paulo Leminski

  relógio parado
o ouvido ouve
  o tic tac passado

Coisa de bêbado

Um bar escolhido por quem bebe até atravessar as porteiras da razão e ingressar no universo paralelo precisa ser especial. Especial para o delírio. Normalmente é sórdido, mas não como aquele descrito pelo L.F. Veríssimo onde os cães sarnentos eram colocados para dentro e Jesus Cristo pregado na cruz tinha um tapa-olho, que era uma barata esmagada. O bar do bêbado que respira álcool é aquele que é como alma gêmea e onde a bebida, seja ela etanol misturado com água ou uísque 18 anos, tem sabor especial. Ele tinha um assim, perto da casa. Era rico, poderia conhecer o mundo viajando de primeira classe, mas não fazia isso e explicava: "Lá não tem meu bar". Às vezes era obrigado a viajar com a mulher que o aturava há anos. E sempre o carrão tinha problema na estrada. Ele parava o veículo no acostamento, levantava o capô, abria o compartimento destinado à água, tirava um canudinho do bolso e tomava goles e goles de vodka, uma das suas preferidas. Um dia parou de beber, com mais de 70 anos, porque estava com um pé na cova e outro na casca de banana. Se transformou num grande filósofo da vida, viajou o mundo e toda vez que passava em frente ao "seu" bar, apenas balançava a cabeça negativamente, reforçando a certeza de que tudo aquilo não tinha passado de coisa de bêbado.

domingo, 15 de dezembro de 2013

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Boca no trombone

Boca no trombone. Mão na vara. Ele viu sem ouvir. Era uma televisão grande. Preto e branco. Estava pendurada no teto de uma padaria da praça principal da vila. Do outro lado, a torre da igreja protegia tudo. O que seria aquilo? O músico não parava com a cabeça. E a vara ia e voltava. A boca sempre colada. Os olhos, às vezes, ficavam totalmente brancos, como se ele estivesse em êxtase ou morrendo. De prazer, certamente. Que som teria aquele instrumento? Pediu para o portuga aumentar o volume. Ele disse que a tv estava estragada. O pão quentinho saiu. Meia dúzia, por favor! E a música muda comia solta ali enquanto alguém servia ao santo uma dose de Tatuzinho lá no canto do balcão. À noite sonhou com uma banda só de trombones, mas o som não veio. Acordou e foi até a loja de discos. Explicou. O dono colocou uma bolacha no toca-discos. Ele ouviu Raul de Barros. Olhou a foto na capa do LP. Era o mesmo músico da tv. Ele tinha ouvido o som sem ouvir. Nunca mais deixou de acompanhar os trombonistas. Até chegar a Trombone Short. Que felicidade!

de tudo

De Paulo Leminski


  vazio agudo


ando meio



  cheio de tudo

A Cidade Chico Science e Nação Zumbi


quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Costeleta que avoa

O avô foi o responsável. Porque falou que voou de "Costeleta". O menino ficou sem entender porque o pai usava costeleta, dos dois lados do rosto - e o avô, não. Mais tarde se apaixonou pela Panair, sentimento que aumentou muito nas asas da voz de Milton Nascimento. Com a empresa revelou-se o Constallation, o rei dos ares antes da era a jato. A seleção brasileira campeã mundial em 1958 voou nele como canarinho. Ele então sonhou em bater asas com os quatro motores e hélices a toda. E pensou nas lindas aeromoças desfilando no corredor e pilotos infalíveis de quepe e impecáveis uniformes. Quando se deu conta, o avião tinha sumido no tempo. Até que o encontrou numa vitrine em loja de aeroporto. Não era da Panair, mas da Real. Comprou. Deixou num lugar de destaque no escritório. Um dia um garoto de cinco anos entrou ali e se encantou com o brinquedo. O dono disse: este é o famoso "Costeleta". O piá olhou sem entender. Mesmo porque hoje pouca gente deixa isso no rosto.

Cada Macaco No Seu Galho Richão


ferida

De Paulo Leminski

   essa a vida que eu quero,
querida

   encostar na minha
a tua ferida

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

num buraco

De Paulo Leminski

debruçado num buraco
vendo o vazio
                      ir e vir

Rafael Rabelo Lamentos do Morro


Palmito e queijo a quente

Ele gostava de pastel de palmito e pastel de queijo. Gostava também do molhinho que colocava ali dentro. Mas o que mais intrigava o pasteleiro da feira de sábado era a mania um tanto quanto masoquista daquele cliente. É que ele só comia logo depois de os pasteis terem sidos tirados do tacho com óleo fervente. E também fazia isso ali ao lado, praticamente com a cara no bafo fervente que subia. No começo o comerciante não entendeu, mas como o rapaz tinha boa aparência, usava roupas decentes, etc, permitiu. Há anos o ritual se repetia - e sempre na mesma hora. Ele não bebia nada e engolia os dois pasteis muito rapidamente. Quase não conversava, pagava e dava sempre uma gorjeta maior que o valor da conta. Ninguém ousava perguntar o por que daquilo. Até que um funcionário novo quis matar a curiosidade. Ele respondeu sem pensar muito: "Como o pastel fervendo porque quero ter a goela ladrilhada como minha mãe. Fico com a cara no vapor porque pretendo ter a pele enrugada como a textura dele". Todo mundo fez que entendeu - e a feira continuou.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Maringá Gastão Formenti


cor de fruta

De Paulo Leminski

   furta a flor
ao crepúsculo cor de fruta
   pássaro tecnicólor

O outro lado

Caiu a noite feito a noite de todos os temores. Havia lâminas afiadas a nos fazer lembrar que ainda estávamos vivos. Até quando? Não era para ser perguntado. Não se podia olhar para trás porque o passado condenava. Para frente eram trevas. O agora eram cortes profundos a cada respiração e as dores eram muito mais lancinantes do que se imaginava. Não havia sangue. O que existia era uma vida sem sentido desde antes do nascer. O que havia era a incapacidade de compreender. O que havia era o açoite dos pensamentos. Eram os gritos da tortura. Eram as entranhas sendo corroídas. Era o cérebro tocando a mesma música. Era o pavor, o terror. Ninguém reclamava. E o silêncio fazia aumentar a dor de cada um naquele nada. Também se rezava. Para o deus imaginado. As orações eram para que a morte chegasse. E ela não chegava, porque tudo aquilo era ela. O outro lado. O desconhecido. O pra sempre.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Dei de cara com a jia

O sapo canta na lagoa, Tião, mas eu gosto da jia. Mais sonora a palavra, mais esguia - e rima. Com sua licença, Jackson, mas a música aqui é outra. Nem letra tem, mas tem a cena real de o tiroteio ter começado no salão e eu saí rastejando pela escuridão. Só ouvia o zunir das balas. O que é que eu fui fazer naquele forró nas quebradas? Queria ouvir os reis do baião e do ritmo, arrastar o pé, ver a poeira levantar e o bicho também porque as meninas todas são fogosas e gostam de se atracar para relar o imbigo. Então fui assim, colado no chão, chegar perto do açude. Foi aí que dei de cara com a jia. Estava a um palmo do meu nariz e nem se mexeu. Achei que era cegueta. Mas ela estava imóvel como estátua e pude ver como são belas as coxas que muitas vezes comi sem pensar no bicho dono delas. Ela então coaxou. Ouvi uma voz ordenando para eu entrar na água e ficar quieto. Foi o que fiz. A jia fiou ali, como sentinela. Eu com água até a boca. Ficamos nos olhando por toda a noite. Quando clareou, saí e fui caminhando para casa. A jia veio atrás. Coloquei ela dentro de uma panela com água fria. Ela ficou quieta. Acendi o fogo. Ela não saiu de lá.

hexagrama 65

De Paulo Leminski

   Nenhuma dor pelo dano.
Todo dano é bendito.
   Do ano mais maligno;
nasce o dia mais bonito.

1 dia,
   1 mês, 1
      ano.

Carlos Gonzaga


quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Água fria

Tomou banho de bacia, dentro do balde, no tanque, de caneca quando não cabia mais em lugar nenhum. Água fresca quase gelada tirada do poço furado no meio do quintal. Primeiro foi o pavor, depois o amor. Ficou este. Cresceu e viu chegar água encanada, chuveiro elétrico, depois banheira, água aquecida a gás, assim como o piso todo da casa que comprou por ter se dado bem na vida. Não esquecia, contudo, os primeiros banhos da infância naquela casa de fundos no subúrbio da cidade grande. Até que um dia viu, reluzente, uma bacia enorme pendurada na parte externa de uma armazém que insistia em resistir à modernidade dos supermercados. Parou o carrão, entrou, comprou e levou junto a caneca de alumínio. No banheiro todo marmorizado, encheu com água fria a bacia enorme e sentou bem devagar. Nem lembrava mais a sensação do contato da água gelada com a bunda. Sentou e ficou ali pensando na vida, no pai, na mãe que já tinham ido embora, eles que continuaram tomando banho frio até o fim da vida. Pegou a caneca, encheu e despejou a água no alto da cabeça. Era criança de novo, depois de fugir décadas e não ter encontrado a felicidade.

magnólia

De Paulo Leminski

   Nem tudo envelhece.
O brilho púrpura,
   sob água pura,
ah, se eu pudesse.

   Nem tudo,
sentir fica.
   Fica como fica a magnólia,
magnífica.

Venâncio e Corumba Chuleado da Vovó


terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Quem é que faz?

Acordou assustado com o sino da igreja. Estranhou. Sempre ouviu. Morava do outro lado da rua. A catedral às vezes lhe parecia um monstro a lhe chamar para a missa do sétimo dia. A sua. Mas isso só em algumas ocasiões. No mais, olhava o povo entrar ali e sair da mesma maneira. Alma ele tinha descartado há muito tempo. Mais uma badalada. Acendeu a luz do teto apertando a perinha pendurada num fio imundo. Sozinho naquele quarto. Há quantos anos? O colchão no chão fedia a azedo. Não havia mais nada ali, a não ser um amontoado de roupas sujas num canto. Ouviu alguns fogos. Eles acenderam um pouco sua memória. Meia-noite, Natal, nasceu Jesus - se é que ele existiu. Não acreditava em nada, a não ser no que estava demorando para vir. Queria sossego. Lembrou de uma música de Dolores Duran que, na voz de Nana Caymmi, pedia uma noite de paz. Ele não tinha nem noite, nem dia, nem nada. Sempre foi assim. Da janela olhou a torre de onde vinha o som. Sem perceber cantou um trecho de outra música. Noite feliz. Perguntou para escuridão: "Quem é que faz?". Não houve resposta. Voltou para a cama. Apagou a luz. Continuou no tormento.












Manhã de Carnaval Baden Powell


assombra

De Paulo Leminski

   primavera de problemas
a luz das flores grandes
   assombra as flores pequenas

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Filtro

Filtro de barro. Ela queria um. Leu não lembra onde que a água que sai da torneirinha é a mais pura possível. Acordou o marido no meio da madrugada. Quero um! Ele achou que era um sonho. No dia seguinte, no café da manhã, quero um! Ele foi trabalhar com o filtro na cabeça. Melhor comprar logo essa bagaça, pensou, porque sabia que a amada não ia sossegar enquanto não tivesse o tal na cozinha. Comprou. Nem fez muita pesquisa. Inauguraram com festa regada a água. Depois ela pediu uma caneca de alumínio, daquelas grandes, porque a água ficaria ainda mais fresquinha. Ele comprou duas. Passou um tempo até que ele teve uma ideia que também veio no meio da noite. Bolou um esquema e foi buscar o líquido para colocar nele, o filtro de barro. Ela nunca soube, mas achou uma diferença no gosto da água assim que experimentou o primeiro gole da nova fonte. Gostou. Se sentiu melhor, mais disposta, passou a olhar tudo com mais paciência, etc. Deixou até de ser insistente nos pedidos. Era o que ele queria. Por isso, nunca mais deixou de ir à igreja. Para pegar água benta de todos os recipientes que podia. Amém.

apagar-me

De Paulo Leminski

apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme

Samba da Minha Terra Novos Baianos


Sono

Domingo foi ontem. Esqueci porque dormi.

sábado, 30 de novembro de 2013

Sesta

Sábado é a sesta da semana, com a vantagem de no dia seguinte a preguiça continuar.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A Felicidade Silvinha Telles


que se foda

De Paulo Leminski

   - que tudo se foda,
disse ela,
   e se fodeu toda.

Beijo para as árvores

Ao subir as escadas o vento lhe chamou atenção. Saía de casa para o anexo em cima da garagem, onde se escondia e fingia trabalhar. Parou. Olhou na direção de onde vinha. Pela primeira vez reparou as árvores da rua paralela. As copas, umas grudadas nas outras, balançavam pra lá e pra cá. Então ele começou a decifrar a conversa entre elas. Eram poemas em forma de zumbidos, muxoxos, estalidos. Palavras indecifráveis mas que faziam sentido para ele, que parado ficou antes do último vencer o último degrau. Ele ouviu quando uma falou para outra que estavam sendo observadas. E aquilo se espalhou. Então as pequenas flores amarelas se transformaram em olhos. E estes eram doces como as curvas das montanhas na linha do horizonte. Ele sorriu por dentro e por fora porque vivia ali um momento raro e mágico. Então mandou um beijo, assim, como se faz, colando ele na mão e assoprando. O beijo enfrentou o vento e entrou nas árvores. Houve um arrepio e, logo em seguida, um agradecimento. Ele então entrou no escritório, fechou a porta, ergueu a persiana da janela e viu as árvores, agora imóveis. O vento foi embora. Mas elas estavam brilhantes, com a luz da mãe natureza.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Sem pandeiro

Não sou poeta e não sei tocar um instrumento. Tentei haicai e caí em depressão. Fui de caixa de fósforos e quase incendiei o acervo de discos onde estava toda a obra de Ciro Monteiro. Conheci Leminski mas ele não me conheceu. Foi numa noite fria, tomamos conhaque e quem desmaiou foi a mulher de um amigo dele. Quase escrevi algo num guardanapo do restaurante, mas derrubei um copo e tudo ficou melado. No passado achava que ame-o ou deixe-o era poesia. Mas aí soube que os gorilas diziam isso para quem estava pendurado no pau-de-arara. Acho que traumatizei. Assim aconteceu com o pandeiro. Fui numa festa onde apareceu um regional para tocar chorinho. Não sei por que entrei numas de bater no couro que estava esticado em casa, bem longe dali. Mandaram buscar. Eu não toquei nada e quase fizeram da minha cara um instrumento de percussão. Agora, velho, continuo na mesma. Sem poética. Sem fazer um som. Minha voz é horrível para cantar. Desafino até para repetir um maluco que gravou algo falando em esperma entrando.

hoje

De Paulo Leminski

   que dia é hoje?
um dia, eu soube
   hoje me foge

Nelson Gonçalves Boneca de Trapo


terça-feira, 26 de novembro de 2013

Assim falou....

Não aguento mais! Vou acabar me afogando na merda das informações. Me jogam todo dia na cara. O motoqueiro que manda dois jornais para a grama. Caem perto do cocô da cadela que aduba a grama e tem mais consistência. As revistas lixos que assino também chegam assim, para foder o final de semana. E tem o noticiário em todos os duzentos canais abertos e a cabo da televisão. Todo mundo falando asneira, com cara de seriedade e com os jornalistas balançando a cabeça em aprovação como idiotas que são. E na internet? As mentiras chegam pelo celular, notebook, PC, pelo cano do esgoto, no rolo do papel higiênico. Chega!!!! Eu quero voltar pra Bahia e fazer um casebre em Arembepe. Puta merda!! Tem Camaçari ao lado e cagaram no mar!! Floresta amazônica, lá no meio do nada. Como? Tem antena parabólica? Enfiem no rabo! Vou procurar uma loca. Loca, não louca, e ler Zaratrusta de trás pra frente e de ponta cabeça. Ou queimar o livro porque tem um "assim falou" no título do Nietzche. Calma benzinho! Estou escrevendo um negócio aqui. Já vou!!!! Está começando a novela? Tchau pra vocês.

caminho de espinho

De Paulo Leminski

   longo o caminho
de uma flor
   só de espinho

Minha Candidatura Caco Velho


segunda-feira, 25 de novembro de 2013

flauta índia

De Paulo Leminski

a flauta índia
diz sempre
                    não ainda

Filme Triste Trio Esperança


Catarro

Sempre gostou do som do catarro. O som da palavra, não o produzido por aquele velho puxando a lesma do fundo da alma para emplastrar o que aparecesse na frente. Catarro, catarrento. Mas até aquele dia não tivera a experiência de produzir em seu corpo uma quantidade suficiente para encher um copo americano, por exemplo. Tinha pensado nisso numa noite mal dormida. Visualizou a imagem ali ao lado, em cima do criado mudo, no lugar onde, em muitas casas deste país, ainda existe a dentadura mergulhada e sorrindo para quem quiser ver. Tossiria de três a cinco vezes e aí faria o esforço para tirar a gosma, a placa catarrenta para cuspir dentro do copo. Conseguiria seu intento? Na noite seguinte foi derrubado por uma febre altíssima. Achou que poderia ser delírio. Não era. A garganta trancou e ele sorriu, mesmo sentindo uma facada no gogó. Ficou quase sem respirar, mas foi paciente consigo mesmo. Sabia que, a qualquer hora, a qualquer minuto, começaria a expectorar, como dizia a propaganda daquela pomada, a tal da Vic, mais antiga do que ele mesmo. No dia seguinte tossiu duas vezes, mas o que saiu foi sangue. Não ficou assustado. Forçou, então, e mais sangue saiu. Junto, contudo, estava lá! E assim foi até a noite. Trocou o copo por um maior, porque era muito sangue para pouco catarro. Pensou em separar tudo depois. Mas não teve tempo. Sentiu-se fraco. Chamou então um irmão que morava próximo. A cena de horror deflagrou o sinal para a ambulância, a UTI do hospital e um tratamento intensivo. Disseram que rompeu uma veia interna. Ele perguntou sobre o catarro. Nem responderam. Voltou para casa duas semanas depois. Mandou fazer um quadro do tamanho de uma das paredes da sala com a palavra. Deixaram de aceitar convites para almoçar ou jantar na casa dele.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Serpente de aço

Viu a lâmina na vitrine de um loja de aeroporto. Alemã. Tinha um desenho e o cabo era de madrepérola. Atração fatal. Comprou, despachou, pegou, guardou. Ficou muito tempo sem vê-la. Lembrou que, quando criança, se alguém escondesse algum objeto do resto da turma, perguntavam se estava chocando. Sim, este estava chocando a serpente. Ele apenas esperava o sinal. Qual? Não sabia. Sentia. Ele veio no dia em que viu uma propaganda partidária. Aquele rosto tomando conta da tela não era de um humano. Era a própria besta do apocalipse. As palavras que saíam daquela boca fediam. Ele sentiu isso sentado na poltrona da sala onde morava sozinho. Foi ao ninho e pegou a serpente. Era pequena ao ponto de desaparecer se ele fechasse a mão em torno dela. Estudou os hábitos da besta. Queria fazer a coisa de dia, diante de muita gente. O melhor lugar era um restaurante que o escroto frequentava com os puxa-sacos de sempre. Foi lá. Entrou. Chegou perto alvo. Chamou-o pelo nome. Recebeu de volta o sorriso fabricado do candidato. O golpe foi certeiro. Na carótida. O sangue espirrou como em filme de samurai. Ele saiu devagar do lugar. Ninguém o incomodou. A luz do sol o fez colocar o óculos escuro. Voltou a pé para casa. Cumprira a missão divina. Guardou a serpente manchada de sangue. Ficou esperando um novo sinal.

Jorge Benjor da Capadócia


além das telhas

De Paulo Leminski

luxo saber

além desta telhas
um céu de estrelas

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

dias de encher linguiça

De Paulo Leminski

home o circo está na cidade
todo mundo me telefonou
hoje eu acho tudo uma preguiça
esses dias de encher linguiça
entre um triunfo e um waterloo

Pra não dizer que não falei das flores Geraldo Vandré


Nua e descabelada

Foi presa por atentado ao pudor. Virou notícia no jornal porque entrou numa galeria de esgoto e deu o maior trabalho à polícia. Juntou multidão para ver o ocorrido. Aquela multidão que pede para pular quem está no terraço do prédio ameaçando suicídio. Ela estava nua. E era linda. Mas ninguém via o rosto. Descabelada, correu por entre bancários e automóveis. Não chovia. O sol era de derreter a moleira. O fedor do esgoto onde ela entrou era intenso, mas havia árvores em volta. Vieram os bombeiros. Entraram. Tiraram a moça, agora coberta por um plástico preto. Quando retornou à luz do sol, um policial pegou no queixo dela e ergueu o rosto. Ao afastar os cabelos, houve um silêncio no mundo. Ela tinha barba cerrada. Naquela hora, o caminhão velho do circo mambembe estava bem distante. O dono não queria assumir o filho que estava começando a crescer na barriga da descabelada.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Lucio Alves Helena, Helena, Helena


certezas de dúvidas

De Paulo Leminski

   nunca sei ao certo
se sou um menino de dúvidas
   ou um homem de fé

   certezas o vento leva
só dúvidas continuam de pé

Na área de preservação

O barco de alumínio com os três flagelos singrou as águas da baía na noite escura feito breu. O que tinham bebido não estava no gibi. Saíram quando um temporal se armava, apesar das recomendações contrárias. O motorzinho de popa gritava como um bicho a pedir socorro. Fantasmas de navios apareciam de repente como monstros saídos de um filme japonês. Uma luz nas trevas fez o comandante bêbado embicar o barco naquela direção. Na ilhota o casebre era o único a ter vida. Era um arremedo de boteco onde os três beberam mais e contaram que estavam indo para uma fazenda no pé da serra em área onde não se podia arrancar uma folha de grama, por causa dos ambientalistas. Quando saíram a chuva tinha apertado e as pequenas marolas quase afundaram o barquinho. Voltaram. Encharcados dormiram dentro do bar. No outro dia, de sol, saíram e enveredaram por riozinho que desembocava no mar. Chegaram à fazenda. Caminharam até uma casa que serviu de moradia para o dono, um dos três flagelos. Mais tarde comeram carne de tatu ensopada. Um dos três gostou de uma flor e ao chegar perto para sentir o perfume, foi picado na testa por um maribondo. Urrou de dor. Naquela hora sentiu que estava em outra dimensão, a dimensão dos bêbados. Tomou mais um gole e assim foi, junto com os outros, por uma semana. Até que conseguiram voltar. Como flagelos, para a cidade grande. Estavam bem diferentes. Inchados de cachaça.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Periquito

De Paulo Leminski

Morreu o periquito,
A gaiola vazia
Esconde um grito

O bem do mar Dori Caymmi


Avisada


Eu bem que falei para ela esquecer aquilo. Não acreditou. Foi uma vez ao comício do maluco e se encantou como se ali estivesse a própria reincarnação do Jesus Cristinho. Filiou-se ao partido. Distribuía santinho em tempo de eleição. Uma vez ganhou o olhar do doido e quase teve um orgasmo. Chegou em casa contando para a mãe que ele tinha colocado os olhos em cima dela. Quando recebeu o convite para uma convenção da agremiação política dormiu com ele dentro da calcinha. Foi lá. Ouviu o discurso inflamado e as promessas de que tudo iria mudar quando ele, o destemperado, assumisse o governo e tomasse conta do Palácio. Ele ganhou. Ela precisou ser socorrida num posto de saúde depois que ouviu o resultado da apuração. Depois começou a prestar atenção nas atitudes do descerebrado. Ele empregou a família e até o cachorro de estimação ganhou uma sala na sede do governo. O sonho dela começava a desmoronar. Mas isso demorou todo o primeiro mandato e metade do segundo para ela perceber. Começou a sofrer. A dor era maior do que aquela quando o primo a enganara prometendo casamento. Além de tirar a virgindade dela, espalhou o feito para todo o bairro. Definhava a cada discurso. Espumava a cada notícia de roubo explícito. Um dia se jogou embaixo de um ônibus. Não morreu. Os socorristas estranharam que ela tinha uma foto do coisa dentro da calcinha. Mas na parte de trás e enterrada entre as nádegas.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

vampiro

De Paulo Leminski

    impuro espírito
raro respiro
    o ar aqui tenta
arquiteto
   um vago voo
                       vampiro

Sem mosca

Chegou em casa repetindo sem parar: "Em cu raspado não senta mosca". Foi dormir dizendo essa indecência, e a mãe, Filha de Maria, devota de tudo quanto é santo, auxiliar do pároco da vila, enfim, uma santa com passaporte carimbado para o céu, não soube o que fazer naquela noite. Levou-o para o quarto e antes de deitar, sozinha na cama grande, porque o marido já tinha morrido há alguns anos, ficou pensando no tal do cu raspado. No dia seguinte acordou cedo, esperou a hora do seu filho único levantar, entrou no aposento dele, abriu a janela, o sol iluminou tudo, ele abriu os olhos e falou de novo. E foi repetindo, feito disco furado, até que ela resolveu chamar o benzedor. O velhinho, seu Januário, disse que aquilo era coisa do demônio, porque nunca, em oitenta anos de atividades rezadeiras, tinha escutado tal coisa. Enquanto ele benzia e colocava uma imagem na mão do garoto, este não parava de dizer a frase da mosca e do cu sem pelos. Foi só Januário sair e a preocupada mãe se esbaforir atrás dos amigos do filho para tentar saber o que tinha acontecido na noite anterior. Encontrou o mais chegado, perguntou se o filho bebeu demais ou feito outra besteira. Não, nada disso, foi a resposta. A única coisa diferente foi uma quenga loirinha e novinha que tinha aparecido não se sabe de onde e o menino se encantado de de virar o olho. Tímido, tentou falar com ela, mas a mulher não quis nem saber. Mais: diante da insistência do garoto, que fez até declaração de amor sem nem saber o nome da rapariga, ela falou bem alto e, segundo o amigo, a frase parecia foi como uma pancada que o menino recebeu no meio da testa. "Em cu raspado não senta mosca".

Nara Leão e Roberto Menescal Por Causa de Você


terça-feira, 12 de novembro de 2013

rosa rilke raimundo correia

De Paulo Leminski

Uma pálpebra,
mais uma, mais outras,
enfim, dezenas
de pálpebras sobre pálpebras
tentando fazer
das minhas trevas
alguma coisa a mais
que lágrimas

Zeca Pagodinho Deixa a Vida me Levar


O Fenemê disse alô

Era do tempo em que telefone se chamava macaco. Porque todos eram pretos. E grandes. E pesados. Armas usadas em alguns assassinatos passionais. Ele guardou um em casa, porque os filhos achavam demais enfiar o dedo nos números para discar um por um. Também diziam que era um absurdo sustentar aquele peso para dizer alô. Escondeu o macaco num baú e viu a telefonia brasileira chegar na era digital e o escambau. Resistiu o quanto pode a ter um aparelho celular. Mas quando o de linha foi colocado no lixo que não é lixo, achou que deveria ter um. Para falar com os velhos amigos que ainda estavam vivos. Para recordar - porque, como disse o Gabriel, aquele, é preciso viver para contar. As teclas eram minúsculas e ele não enxergava os números. Trocaram por um de tela e ele se atrapalhava todo. Tanto que o manuseio interferia até no problema da próstata que o fazia ir ao banheiro duzentas vezes ao dia para o alívio do xixi sagrado. Cansou mijar na cueca, calças, bermudas e levar esporro da mulher, velhinha mas pentelha como sempre. Um dia olhou aquela tela acesa por um toque e resolveu acabar de vez com a relação. Foi até uma avenida perto de onde morava e colocou discretamente o aparelho no asfalto. Ficou olhando da calçada. Teve sorte. Passou um caminhão enorme em cima. Ficou muito feliz, principalmente porque o bichão era um Fenemê do seu tempo.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Dos dentes

Lembrou de uma reportagem da revista Realidade que relatava o trabalho de um funcionário do IML do Rio de Janeiro em tratar um caranguejo dentro do ralo do local onde os corpos eram lavados depois da autópsia. Ele engordava o bicho assim, com restos dos corpos, com sangue coagulado misturado com água. Depois, claro que comeu-o com o maior prazer tomando cerveja casco escuro, porque preferia essa às de casco claro. Lembrou porque começou a juntar o que tirava dos dentes depois das refeições. Tinha esquecido de quando a coisa começou, mas passou a ter o cuidado de fazer um bom trabalho com o fio dental e não mais pregar o produto da limpeza no azulejo branco do banheiro. Guardava tudo num lata que antes tinha abrigado um sorvete sabor flocos. A geladeira manteve por muito, mas muito tempo aquele material. Ele morava sozinho, não tinha como alguém mexer na produção. Um dia resolveu dar um destino àquilo. Fez uma sopa para uma visita inesperada e de quem ele não gostava muito. O outro adorou. Ele também. Lembrou do caranguejo do IML. Achou que a criação dele era mais gostosa, mesmo porque não deu tanto trabalho botar pra dentro.

quem sai aos seus

De Paulo Leminski

   vozes a mais
vozes a menos
   a máquina em nós
que gera provérbios
   é a mesma que faz poemas
somas com vida própria
   que podem mais que  podemos

Leandro e Leonardo Pense em Mim


quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Asas de anjo

Começou a olhar aquela imagem do anjo protegendo duas crianças num caminho quando o que via começou a fazer sentido na vida - ou não. O quadro estava ali, desde sempre, pregado na parede acima da cabeceira da cama, segundo lhe contou a mãe. Não olhava para as crianças ou para o rosto do anjo, que flutuava, mas sim para suas imensas asas. Quando começou a excursionar com sua turma da rua para caçar pardais e pombas com estilingue, aumentou sua fixação por elas. Os bichos mortos a bolinhas de barro secas de um dia para o outro não lhe davam pena. Ele pegava um por um e abria as asas para ver se elas se pareciam com aquelas do quadro. Mas nada se comparava. Nem as de uma pomba toda branca que teve a cabeça quase arrancada por um pelotaço do bom de mira da molecada. Numa noite de insônia, ele jura que viu o anjo sair do papel, voar e ficar de frente para ele lá perto do teto do quarto. A voz não saiu para chamar a mãe e o pai. O anjo riu - e ele conseguiu levantar e acender a luz. O anjo estava no quadro. Conseguiu dormir. No dia seguinte, ao se levantar, encontrou no chão uma pena enorme. Guardou. Pediu anos mais tarde para que a colocassem no caixão quando morresse. Achava que, assim, iria voar para o Céu.

coração escrito

De Paulo Leminski

coração
PRA CIMA
escrito embaixo
FRÁGIL

Telefone Mudo Trio Parada Dura


quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A cama da foto

Era adolescente quando se apaixonou por fotografia. Na verdade, a magia que o encantou era mais antiga, pois foi com sacrifício que pagou todas as mensalidades do Baú da Felicidade e conseguiu tirar uma maquininha de plástico que tinha o singelo nome de Tuka. Mais tarde teve a sorte grande ficar com uma maquinona emprestada por um funcionário da indústria automobilística, a fantástica Nikon F, que era usada por dez entre dez profissionais da imprensa e artistas em geral. Passou um dia com ela, quando fez aquela foto que nunca mais esqueceu. A cama de solteiro, toda desarrumada, ficava embaixo de uma janela - e a luz que ali penetrava foi perfeita para o claro/escuro eternizado no filme Kodak TRI-X e na cópia de papel. Não havia mais nada, apenas aqueles lençóis e um travesseiro que quase não aparecia. Quarenta anos depois ele achou a foto dentro de um livro, já amarelecida. Ficou olhando, olhando e descobriu que toda aquela confusão, aquelas dobras, tudo enfim, lhe apareceu como um presságio do que seria a sua vida durante muito tempo. Pensou nisso e sorriu. Mesmo porque, depois de velho, aprendeu a arrumar os lençóis  e dobrar as colchas assim que se levanta.

Evinha Luciana


amar: armas debaixo do altar

De Paulo Leminski

para frei betto e frei leonardo boff


   santa é a gente
quando lá fora faz frio
   e aqui dentro está quente
- entre! Digo eu,
   hora de ser igual,
hora de ser diferente,
   entre você e entre

terça-feira, 5 de novembro de 2013

maravilharia

De Paulo Leminski

tanta maravilha
maravilharia durar
aqui neste lugar
onde nada dura
onde nada para
para ser ventura

Tonico e Tinoco Chico Mineiro


A caneca

Era grande e, bem areada, tinha um brilho que a tornava de prata pura. Repousava sobre uma pequena toalha de renda branquinha como algumas nuvens que o faziam parar e ficar olhando como se aquilo fosse um mistério. Seu contorno ganhava mais destaque porque tinha como fundo a cor de barro do filtro. Também tomava conta daquela casa pobre porque estava colocada numa posição em que era banhada pelos raios de sol da manhã que atravessavam o vidro de uma janela. Só tinha um problema. A caneca de alumínio era do pai, aquele mesmo de olhar duro e que metia medo sem dizer uma palavra, apontar o dedo ou erguer a mão. O senhor todo poderoso da casa apenas olhava. E o menino olhava a caneca que, para completar, tinha uma espécie de colar bordado perto da boca, uma linha fina, delicada, com figuras minúsculas entrelaçadas. Ele via o pai se servir da água e os olhos cerrados eram indicação de que o líquido era dos deuses. Um dia ele encostou o dedo no metal. Frio. No outro, abriu a torneirinha e escutou o som da água se acomodando naquela joia. Foi tudo muito rápido. Ele estava sozinho na casa e tomou um grande gole, fechando os olhos para imitar o grande senhor. Ao abri-los, encontrou o olhar pregado no rosto seco. Tremeu. Viu então, pela primeira vez, um sorriso que jamais vai esquecer. E ouviu: "É bom, né?"

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

sorte e azar

De Paulo Leminski

   sorte no jogo
azar no amor
   de que me serve
sorte no amor
   se o amor é um jogo
e o jogo não é o meu forte,
   meu amor?

Pedro Sertanejo e Oswaldinho


Chumbo quente

Abriu a cortina, era noite, e todas as imagens de Exu gargalharam. Ninguém sabia daquilo, mesmo porque morava sozinho no sobrado abandonado. A chama da vela tremeu. Ele se arrepiou. Estava pronto. Saiu protegido pela capa da noite. O coração era uma pedra de gelo. Sabia o que tinha de fazer. Não podia adiar um minuto, senão seria enterrado pela culpa de não ter agido. Viu o carro do boy estacionado na casa de mais uma que enganava. Quando abriu a porta do motorista o soco inglês quebrou-lhe a mandíbula e ele desmaiou. Levou o corpo coberto de grifes para o sobrado. Escondeu o carro. Amarrou o sarado e tatuado. Vedou-lhe a boca e esperou acordar. Dois olhos arregalados de pavor. O maçarico derreteu o chumbo. Ele despejou devagar nos olhos abertos a força. O verde desapareceu. Ele então lembrou da filha usada, desprezada e humilhada. Pulsos cortados. Vida ceifada. Depois que deixou a encomenda na frente da casa dos pais dele, voltou a pé. Estava tranquilo. Subiu a escada de madeira. Entrou no seu quarto. Na frente do altar fez o sinal da cruz para todos os santos ali presentes. Dormiu como um anjo.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Pastel e caldo de cana

Esqueceram? Eu não! Sábado e domingo, aqui, tem três dias. Por isso comi pastel de palmito e tomei caldo de cana. Na feira. De sexta.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O Bala

Ele tem saudade do Bala. Sempre foi o carrinho preferido. Branco, duas portas. Voava. Motor movido a gasolina. O motorista, a álcool. Já tinha computador de bordo naquela época. Só assim se explica como conseguia voltar para casa com o dono mamado e apagado. Fez isso até em estrada - e não havia nenhum santinho grudado no painel ou pendurado no espelho retrovisor interno. O Bala era sensível. Certa vez, porque o piloto insistia e furar seguidos sinais vermelhos de uma grande avenida, jogou para fora da estrutura a roda dianteira esquerda. As faíscas que saíam do contato do ferro com o asfalto iluminaram a madrugada fria da cidade. Em outra ocasião, resolveu estacionar encalacrado num canteiro central. Ele amava o Bala, mas o carro não aguentou tanta loucura. Morreu num poste depois de o dono ter feito uma via sacra por vários bares e encerrado o roteiro naquele que era frequentado apenas por tiras. O Bala não suportou. A pancada foi tão forte que o transformador de energia explodiu e meia cidade ficou sem luz. Mas ele salvou o dono. Sem cinto, o encosto do banco quebrou e o motorista se livrou de afundar o peito no volante, que ficou todo retorcido. O carro foi para a sucata. Mas a história de amor ficou.

o pão feito em casa

De Paulo Leminski

   ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
   aqueles que deixaram
que a mágoa nova
   virasse a chaga antiga

   ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é o pão feito em casa
   e que a pedra só não voa
porque não quer
   não porque não tem asa

Construção Chico Buarque de Holanda


quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Todo dia jornal da tarde

O menino lhe trazia o jornal toda tarde. Tinha o cabelo liso e usava franjinha. Ganhava um café com leite que bebia como se fosse a maravilha do mundo. A banca do pai ficava a uns 200 metros do boteco. O que comprava o jornal era filho do dono do bar. Adolescente. Não sabia o que fazer da vida. Gostava daquele jornal porque tinha grandes fotos e algumas reportagens diferentes do que ele costumava ver nas primeiras páginas dos outros. Os dois conversavam pouco. Nem tinham muito assunto. De segunda a sexta o menino trazia o exemplar assim que ele chegava. Por causa daquele jornal, e de outros que começou a acompanhar naquele tempo em que os generais comandavam a ordem unida no país, o adolescente arriscou na profissão de repórter, já que não imaginava o que iria fazer. Vários anos depois chegou a escrever algumas reportagens para aquele jornal que lia entre servir uma cachaça e outra. Hoje ele ainda se pergunta o que aconteceu com o guri. Se pudesse encontrá-lo, iria agradecer por ter-lhe aberto as portas de um mundo que, ali, naquela esquina suburbana, eles não tinham ideia do que fosse.

Ouro Negro Moacir Santos


Já disse

De Paulo Leminski

Já disse de nós.
Já disse de mim.
Já disse do mundo.
Já disse agora,
eu que já disse nunca.
Todo mundo sabe,
eu já disse muito.

Tenho a impressão
que já disse tudo
E tudo foi tão de repente.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

não discuto

de Paulo Leminski

não discuto
com o destino
o que pintar
eu assino

Depois da subida do morro

As casinhas penduradas no morro eram coloridas. Ele via favelas todo dia no trajeto para o trabalho. Morava no Rio de Janeiro, mas aquela foto entrou na sua retina como um aviso que vinha lá de longe, como se ouvisse um chamado que não sabia explicar. Foi atrás. A cidadezinha no Interior do Nordeste ficava no fim de uma longa reta que terminava no pé do tal morro. Ele subiu e os olhares daqueles moradores pobres eram de espanto. Ele era branco como leite e usava roupas muito coloridas. Foi vencendo a ladeira na esperança de que um sinal, qualquer um, surgisse para lhe indicar o que não sabia. O sol torrava seus miolos. As casas foram rareando. O caminho seguia até o topo. Lá em cima ele parou, limpou o suor da testa com as costas da mão direita e, então, viu a árvore com uma sombra convidativa. Foi lá, sentou, encostou-se no tronco. Aí ouviu um canto, um lamento. A voz emitia palavras numa língua que ele nunca tinha ouvido. Seguiu o som. Descobriu a aldeia dos índios. Não teve medo. Ao vê-lo, os que estavam ali pararam o que parecia ser uma cerimônia. Os Xucurus tinham conseguido!

Benedito Lacerda e Pixinguinha Vou Vivendo


sábado, 26 de outubro de 2013

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

De Paulo Leminski

   bar das putas
os dias são poucos
   as noites são muitas

Oliveira das Panelas


Dois dentes

Era tão magro que um dia o convidaram para entrar numa escola de faquir. Levava jeito. Mas ele não gostava da ideia de ficar deitado ou sentado em cima de pregos. Pior eram as cobras. Tinha visto uma vez o famoso Silk - e não gostou nada. Vivia a vidinha de subúrbio indo ao colégio público e ajudando o pai num pequeno comércio. O velho um dia deu a ordem: queria o filho oficial da Polícia Militar. Ele lia jornal. Tremeu na base. Naquele pedaço do país ser meganha era como pintar um alvo na cara. O pai mandou ele para uma dessas academias de ginástica de antigamente, sempre chamadas de Hércules ou coisa parecida. Precisava pegar peso e ter músculos. Ele foi. O dono era ex-mister qualquer coisa. Recebeu-o com um olhar de desaprovação. Mas o garoto era determinado. Malhou. Foi para o exame. Passou no intelectual e no físico. Mas bailou no médico. Tinha músculos, mas a falta de dois dentes lá no fundo da boca era um pecado mortal. Tinham sido arrancados por um protético metido a dentista na vila dos pobres. Ele gostou da reprovação. Saiu da vila, virou profissional da saliva, foi morar em bairro de bacana. Tinha dinheiro até para ficar com a boca rica feito político em campanha, mas nunca colocou aqueles dentes, apenas conservou bem os outros. Para lembrar do que tinha se livrado.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

clima

De Paulo Leminski

nem toda hora
é obra
nem toda obra
é prima
algumas são mães
outras irmãs
algumas
            clima

Esperanças Perdidas Originais do Samba


Andaime do amor

Amou daquela vez como se fosse a primeira. O problema era a saída. Estava no quarto da princesa e o pai era uma fera, como só acontece em título que rima com donzela. Seus olhares tinham se encontrado na quadra do colégio, competição de voleibol, ele jogador, ela torcedora, classes diferentes. O cupido foi uma bolada que ele levou no peito porque simplesmente parou quando foi flechado pelo olhar dela. A menina riu. Ele ficou alisando a marca vermelha na pele durante toda a noite. Se encontraram, começaram a namorar, ela não podia sair de casa, ele viu o andaime da reforma no prédio, marcou hora na madrugada, subiu, entrou, aconteceu tudo como num filme mudo, ele saiu. Para descer foi mais difícil. Quando estava no segundo andar, tudo começou a balançar. A menina soltou um grito lá de cima. O pai acordou. O menino estava pendurado, se agarrando com toda força para não despencar. De repente a estrutura sossegou. O paizão ajudou o menino a descer. Se apresentou. Perguntou o que estava fazendo ali àquela hora. O menino contou. O pai gostou da ousadia. Convidou-o para um café. Tomaram. Apresentou a mulher dele. O menino agradeceu a tudo e prometeu voltar sempre. Quando saiu, com beijo de despedida e tudo na sua amada, o casal foi para a cama. O pai virou-se para a mulher e suspirou: "E eu que pensava que ela ia ficar para a titia".

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Riachão Cada Macaco no Seu Galho


com quantos paulos

De Paulo Leminski

   paulos paulos paulos
quantos paulos são preciso
   para fazer um são paulo?

   idades idades idades
quanto dá uma alma
   dividida por duas cidades?

Bolachas

Só lembra que aquela mão enorme, de dedos finos e longos, desceu do céu e estralou na sua bochecha esquerda. O rosto virou, tudo escureceu, mas as lágrimas ele conseguiu conter, não sabe como. O pai então virou as costas e foi embora. Ele ficou com aquela marca durante dias, semanas, meses. Não saía. O vermelhão desapareceu logo, mas a dor na alma, não. Foi assim durante anos e anos, mesmo porque aquele tinha sido único tapa que levou na vida. Tapa, não, bolacha. Gostava da denominação, sonora, mas não entendia o motivo de ela ter acontecido. Anos mais tarde, foi visitar a família que se mudara para outro estado. Lembrou daquele episódio e queria saber da mãe, já que o pai tinha partido, o que deflagrou o episódio. Ela lembrou até a idade dele, seis anos, e se espantou da memória do guri. Então, falou: "Foi por causa da bolacha".

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

no varal

De Paulo Leminski

   roupas no varal

deus seja louvado
entre as coisas lavadas

Lucio Maia Maquinado Zumbi


Paçocas

A coincidência foi que os dois frequentavam a mesma banca de jornal. Mas um deles, o escritor, mudou-se daquele bairro e foi ser famoso na vida. O outro continuou batendo ponto ali porque gostava do atendimento, tinha conta em caderneta, enfim, se sentia bem. O que foi embora deixou saudades no jornaleiro, apesar de torcerem por times rivais. Um dia o dono da banca soube, através do que continuou passando por ali, que o escritor iria receber uma homenagem. Perguntou então ao que passava ali toda semana se ele iria na festa. Ao saber que sim, tirou duas paçocas de um vidro, colocou num saquinho branco e escreveu uma dedicatória. Por um acaso do destino o que ia entregar a encomenda não pode ir à cerimônia. Deixou o pacotinho no porta-luvas do carro. Mas avisou, dias depois, o homenageado. E prometeu levar a encomenda num dia qualquer. Não foi, mesmo porque o agraciado trabalhava num lugar cheio de formalidades. Ele esperou a oportunidade, mas antes teve de vender o carro, mas tirou as paçocas dali. Porque acha que este vai ser um dos mais significativos presentes da vida do escritor. O jornaleiro também acha.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

magnólia

De Paulo Leminski

   Nem tudo envelhece.
O brilho púrpura,
   sob a água pura,
ah, seu eu pudesse.

   Nem tudo,
sentir fica.
   Fica como a magnólia,
magnífica.

Retrato em Branco e Preto João Gilberto


Tem um bicho

Tem um bicho dentro de mim que é incontrolável e eu vivo ao sabor de suas vontades. Tem um bicho dentro de mim que é assassino e gosta do gosto de sangue e gosta de ver o sangue jorrar como nos filmes de samurai. Tem um bicho dentro de mim que é medroso ao extremo e se borra de medo se o vento sopra e uiva lá fora. Tem um bicho dentro de mim que dança bolero e casaria com Nana Caymmi se ela só cantasse para ele. Tem um bicho dentro de mim que é anjo e consegue enxergar bondade no mais abominável dos seres humanos. Tem um bicho dentro de mim que renega pai, filho e espírito santo. Tem um bicho dentro de mim que ama a todos perdidamente. Tem um bicho dentro de mim que sobe de joelhos as escadas da penha orando e pedindo o milagre da purificação da alma. Tem um bicho devorador. Tem um bicho bêbado. Tem um bicho abstêmio. Tem um bicho tarado. Tem um bicho assexuado. Tem um bicho hetero. Tem um bicho homo. Tem um bicho burro. Tem um bicho gênio. Tem um bicho sem identidade. Tem um bicho com - e nela está escrito o meu nome.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

A voz de Tambaú

Ouvia todo dia a benção do Padre Donizetti. Pelo rádio. Era uma gravação e voz saía do alto-falante do aparelho como se viesse do outro lado do mundo. Tambaú, para ele, era mesmo do outro lado daquele mundo onde as fronteiras nunca ultrapassadas distavam no máximo quatro quadras. Era um menino que trazia o medo como companheiro inseparável. Ele não sabia o que era isso, apenas reagia àquela coisa que o paralisava e trancava a garganta. Seis horas, Ave Maria. O locutor abria o programa assim e, mais tarde, ganhou votos para ser deputado. O menino não estava interessado nisso. Queria ouvir a voz do padre, a benção do padre - e todo dia aquelas mesmas palavras o faziam imaginar a figura de batina preta, cabelos brancos, olhar de santo dedicado aos desamparados, como ele. Era um momento em que não temia a nada, nem ao Belzebu, se este se materializasse ali ao lado do rádio. Estava protegido pelo padre. Assim tem sido, mesmo depois que a gravação sumiu no tempo junto com o programa religioso. Ele sempre escuta a voz que vem lá de Tambaú. É o que lhe segura a vida, apesar de os medos jamais terem desaparecido.

Nelson Freire Bachianas Brasileira nº4


sucede

De Paulo Leminski

  tudo
sucede
súbito

eu não faço
 expludo

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Ademir Galeno Kalifa do Brega Carro


trans

De Paulo Leminski

se
nem
for
terra

se
trans
for
mar

Mangas do destino

Sempre que podia comprava mangas. Muitas. Se fossem fibrosas, melhor. O prazer não era tirar os fiapos que ficavam entre os dentes. O prazer também não eram os nacos da fruta que comia. O prazer estava na casca. Tinha um ritual que seguia sempre. Uma faca de prata cortava os lados carnudos da fruta. Ele então tirava o principal com os dedos, que ficavam lambuzados. Então, metia a boca no que sobrava colado à casca. Era nesse momento que sempre sentia a mesma coisa. Nunca falou para ninguém, mas ao fechar os olhos para saborear ainda mais o gosto, se via a milhares de quilômetros dali, embaixo de uma mangueira frondosa, ela sozinha no meio de um imenso terreno onde se via aqui e ali plantações de mandioca. O céu azul e o sol inclemente. A árvore tinha centenas de frutas, verdes, combinando com a cor das folhas. E ele via com a alma a presença de todos os antepassados naquela paisagem. Era o início do caminho. Assim, ele jamais iria esquecer. Porque jamais iria deixar de comprar mangas.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

tibagi

De Paulo Leminski

   presa no tempo
a lua
        lá
    como se para sempre

o verde
            ali
cumprindo seu dever

   ser verde
até não mais poder

Jorginho do Pandeiro, Marcos Suzano e Celsinho Silva


Assovio

Com um ano e meio ele começou a assoviar. Nem andava direito, mas começou a assoviar - e bem! Alguns acharam que era por causa dos lábios, carnudos. O pessoal da vila dizia que era por causa dos beiços, mas ele não sabia dessas coisas. Gostou do que ouviu saindo dele mesmo. E não parou nunca mais. Com cinco anos já estava num programa de auditório porque "tocava" Tico-Tico no Fubá e o Brasileirinho com a maior naturalidade, sem errar nota e sem sair do ritmo. Um empresário da cidade grande viu, telefonou e matou a charada: o menino estava pronto para ser uma estrela nacional> Não existia ninguém no país que fazia aquilo profissionalmente. No telefone ele falou de um tal de Willian Furnô (a mãe entendeu assim) um que, no tempo das candongas, era o rei no Brasil. Depois dele, nada. O menino começou a fazer sucesso e era até convidado para festas de milionários. Assoviava tudo. Ganhou dinheiro, foi roubado pelo empresário, mas continuou sua vida de artista até que um dia, na adolescência, conheceu uma princesa. Sua carreira promissora terminou no primeiro beijo. Nunca mais ele quis saber de assoviar.

domingo, 13 de outubro de 2013

sábado, 12 de outubro de 2013

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Borboleta não voa

Borboleta não voa. Ele ouviu este trecho de uma conversa numa linha cruzada. Estava encomendando um bolo para o aniversário do filho e as palavras atravessaram tudo. Ele desligou o telefone e não sabia mais se haveria festa para o guri de quatro anos. Borboleta não voa. Claro, faltava alguma coisa - o complemento ou o início. Como saber? Então ele ficou caçando borboletas na memória. Entraram até aquelas pregadas no prato para enganar turistas no Pão de Açúcar ou Cristo Redentor. A cena que tomou conta, entretanto, foi aquela do terreno baldio, deitado no mato, na brincadeira de esconde com a turma da rua, dia de sol... de repente, várias delas, pequenas, passando perto do seu rosto. Respiração presa e a mente hipnotizada por imagem tão fantástica, onde os galhos finos e a folhas pequenas do mato eram perfeitas como paisagem para o desfile delas. Ao pensar mais uma vez ele chegou a ver em câmera lenta. Então, veio o estalo. A frase só poderia ser: borboleta não voa, desfila no ar. Ele então sorriu e viu o filho mais belo e iluminado naquela véspera de aniversário.


johnny b. good

De Paulo Leminski

   tem vezes que tenho vontade
de que nada mude
   vou ver
mudar é tudo que pude

Waldick Soriano Tortura de Amor


quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Mario Zan Chalana


rita lee

De Paulo Leminski

tudo
que
li
me
irrita
quando
ouço
rita
lee

Cimento

Dom Tomaso não era Dom Tomaso, apenas um cabra com cara amarrotada que vivia numa praia sossegada sem dar bandeira que era da Máfia e, pior que isso, dedo-duro, como veio a se comprovar anos mais tarde. O vizinho um dia recebeu a visita de um homenzinho discreto que lhe mostrou uma foto e disse-lhe o nome real daquele que todo dia saía para caminhar na areia antes de o sol nascer. Ele riu, riu, rolou de rir. Não acreditou na história e foi cuidar da vida, que era catar marisco e subir em coqueiro para ter o que comer e beber durante o dia e a noite. Um dia ele não resistiu ao ver Dom Tomaso, que para ele e todo mundo do vilarejo era o Giusepe, e erguntou então se ele tinha vagina no nome. Giusepe riu  também e se recolheu à casa simples. De noite, quatro brutamontes entraram no quarto daquele vizinho, que tinha vergonha de falar Buscetta, e o levaram amarrado para um buraco que era a fundação de um prédio em construção muito distante dali. Um caminhão de concreto encostou e cobriu-o. Dom Tomaso apareceu e fez questão de misturar muito cimento em  pouca areia para fazer o acabamento da obra.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Com fome nos olhos

Albino e de olhos azuis. Não usava óculos porque era impossível para um roedor das caatingas. O encontro parecia marcado pelo delírio imposto por um sol de derreter tudo. O outro, da espécie humana, tinha saído do Sul do país para realizar o sonho de percorrer os caminhos conhecidos de Lampião e o bando. Vestia roupa parecida, só não portava arma nem aquele chapéu enfeitado porque corria o risco de levar bala sem saber. No quinto dia da caminhada estava tão estropiado e morto de fome que amaldiçoou o dia em que encasquetou de realizar aquela loucura. Perdeu-se no tempo e no espaço. Teve sorte de não espetar o olho num espinho de mandacaru, como seu herói, mas furou a palma da mão direita e aquilo estava latejando por causa da inflamação. Jogou gibão de couro longe, as alpercatas cortaram a pele de seus pés e bolhas pipocaram na sola. Desmaiou e quando acordou viu o albino de olhos azuis. Ficaram se olhando por um tempo - e o calango não fugiu. O ronco da fome fez soar a cuíca no cérebro do aventureiro. Ele lembrou de uma famosa reportagem que mostrava um nordestino segurando aquele rato do mato como o motivo da sobrevivência. Pegou o bicho e já foi apertando o pescoço. Fez isso com tanta força que os olhos azuis saltaram das órbitas. A primeira dentada que deu foi só para arrancar a pele na parte onde ele achou que tinha mais carne. O sangue escorreu pela boca. Ainda estava quente. Ele gostou.

água do coco

De Paulo Leminski

   saber é pouco

como é que a água do mar
   entra dentro do coco?

Mutantes Panis et Circenses


segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Sem jogo com a morte

Ninguém viu, mas ele estava lá fora do enquadramento da cena de O Sétimo Selo, do Bergman. Olhou o jogo de xadrez onde a morte tomava conta de tudo e saiu se arrastando para lavar o rosto no banheiro do cinema. Estava dentro ou fora? Ela, a morte, se apossou dele como uma obsessão tão profunda que nem ouviu o cineasta sueco gritar "corta" para guardar a cena na memória de todos que viram o filme. Se pudesse ele cortaria a árvore, aquela, mas preferiu sair pela avenida respirando o ar poluído da cidade grande. Foi para casa se arrastando e sentindo o fio da foice no gogó. Entregou os pontos para a vida, mas não tinha jogado o jogo - e aquela situação durou muito tempo. Um dia ele achou que tudo estava estranho demais por causa da participação dentro e fora de um filme. Ele não sabia mais o que fazer e resolveu tomar banho. Água muito quente. Ficou mais molenga. Lembrou então da história contada sobre um ator que mergulhava todo dia numa banheira com água e centenas de cubos de gelo. Não tinha banheira. Fechou a torneira de água quente, abriu a da fria. Viu então a morte sair de cena e se afogar num lago ali próximo do set de filmagem. Ganhou o jogo sem mexer uma única peça do tabuleiro.
  

Gaúcho da Fronteira


a metro

De Paulo Leminski

das coisas
que eu fiz a mero
todos saberão
quantos quilômetros
são

aquelas
em centímetros
sentimentos mínimos
ímpetos infinitos
não

domingo, 6 de outubro de 2013

Cinza azul brilhante

Depois tem o amanhã que pode não acontecer mas se acontecer será carregado de lembranças boas deste domingo cinza azul brilhante.

sábado, 5 de outubro de 2013

Pedido

Meus olhos cansados de sorrir pedem ao coração que não datilografe neste dia dedicado a esperar o domingo.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

feijão e arroz no céu

De Paulo Leminski

   lá fora e no alto
o céu fazia
   todas as estrelas que podia

   na cozinha
debaixo da lâmpada
   minha mãe escolhia
feijão e arroz
   andrômeda para cá
altair para lá
   sirius para cá
estrela dalva para lá

Cola

Cola ou não cola? Ouviu a interrogação no meio do caminho - e não sabia do que se tratava. Cola ou não cola? O carro tinha parado ao lado de outro no semáforo. Ele estava meio que caído no banco de trás. Vidro aberto. Olhava para o nada. Quando ouviu, o verde apareceu, o carro saiu cantando pneus, ele até se aprumou no banco, mas não conseguiu saber de que boca saíra a pergunta. Cola ou não cola? Poderia ser uma mentira a ser jogada no ouvido de alguém. Poderia ser a dúvida existencial sobre o método a ser usado para passar naquela prova infernal de fórmulas químicas. Poderia até ser alguém com a imagem sem cabeça de um santo na mão, pois ele caiu e ela voou longe. Cola ou não cola? Ele escorregou no banco e voltou para seus problemas. Pensou na vida que, naquele momento, não estava colando.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Paciência Lenine


mordida

De Paulo Leminski

poema na página
mordida de criança
na fruta madura

Na cadeira do dentista

Fechou os olhos, abriu o bocão e ficou esperando. Não, não era o barulho e o contato da broca. Ficou esperando o que o dentista iria falar. Sim, porque ele tinha esse costume de entabular um monólogo a partir do momento em que o paciente não podia mais fechar a boca. E fazia perguntas, jamais respondidas, obviamente. O que sempre abria a boca e deixava as calças para pagar a conta, porque o profissional ali é caro, resolveu adotar uma tática na consulta seguinte. Assim que entrou na sala, antes de sentar naquela cadeira que tem o desenho próprio para tortura, começou a falar sem parar, sem deixar o doutor responder, emendando assuntos, perguntando e respondendo ao mesmo tempo, enfim, uma metralhadora falatória que deixou o outro mudo. Depois, sentou,fechou os olhos, abriu o bocão, ouviu o som da broca, sentiu-a trabalhar e... não ouviu um "a" do dentista. Feliz da vida, foi para casa descansar. À noite, acordou com o dente latejando e com uma dor que jamais sentira em mais de 20 anos aos cuidados do doutor.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Na cara

De Paulo Leminski

   Eu, hoje, acordei mais cedo
e, azul, tive uma ideia clara.
   Só existe um segredo.
Tudo está na cara.

Tito Madi Sonho e Saudade


Oxítonas



Jiló
Fiofó
Queria ser poeta, mas era viciado na oxítona por causa do nome da figura gramatical. Nos últimos tempos começou a lembrar das aulas do ginásio e do professor de português. Porque era um negão muito parecido com o Joaquim Barbosa. O nome, contudo, era mais pomposo: Herculano. Ele tirou a paranoia da língua, mas esqueceu de incentivar a leitura. Era um técnico muito bom, mas não tinha o dom de levar o povo a sambar no texto - e isso só seria possível com a leitura dos mestres da bateria da literatura universal. Herculano, sem querer, matou os poetas, estes que fazem parte de um outro mundo, pois exprimem os sentidos. Ele, o aluno, foi comer letras nos jornais, nas revistas e depois nos livros, cuja paixão veio de mansinho como a maré na madrugada. Gostou, mas nunca conseguiu escrever o poema que espantaria todos os demônios. Ó, que dó!

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Missão cumprida

Para ele não importava o que ia dentro. Mas sim o que ia fora. A bolsa, por exemplo. Tinha uma estrutura rígida e na imitação de couro não havia mancha alguma, por menor que fosse. Era enorme, como se servisse apenas para levar aquele objeto luminoso e retangular. Sim, luminoso, porque de alumínio tão areado, como se falava, que, se bobeasse, serviria de espelho. Os elásticos que mantinham o conteúdo protegido eram branquinhos e formavam uma figura geométrica. Não, ele não se importava com o que ia dentro. Ok, sempre tinha feijão, arroz e um bife pousado em cima. Em camadas. Na hora do almoço ele colocava no banho-maria e comia ali mesmo, olhando só para o que o garfo conseguia retirar de dentro. Não lavava o recipiente. Era serviço da mulher que cuidava do objeto como se ele fosse entrar no testamento para os filhos do casal. Ele não precisava falar que era preciso todo o cuidado. Ela sabia. Eles se falavam por silêncio e gestos. Um dia ele saiu da fábrica, depois de 20 anos de trabalho. Era operário. Guardou a bolsa no guarda-roupa. Lá dentro, quietinha, ficou a marmita - feliz por ter cumprido a missão.

Ná Ozetti Disseram que Voltei Americanizada


não tem cura

De Paulo Leminski

   leite, leitura,
letras, literatura,
   tudo o que passa,
tudo o que dura
   tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
   tudo, tudo, tudo,
não passa de caricatura
   de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Jorge Goulart O Último


do vento

De Paulo Leminski

   coisas do vento
a rede balança
   sem ninguém dentro

Por dentro

O doutor apertou um botão do aparelho celular super-turbo-intercooler e na tela apareceu a coisa. Olhei, olhei - e não identifiquei. Ele contou que era um dedão do pé decepado e preso ao corpo só por uma parte da pele. A vítima tinha sido atingida por uma barra de ferro. O doutor mostrava aquilo com a impassibilidade dos médicos. Na foto seguinte o dedão estava reimplantado, costurado e roxo. Pedi para ver de novo a foto anterior. Lembrei de que o mesmo médico tinha feito uma minha. Quem caiu fui eu. Rompi o tendão acima do joelho direito. Ele mesmo operou e quando abriu a avenida da rótula ao meio da coxa e escancarou tudo para fazer o serviço de religação, clicou. De vez em quando olho aquela imagem para me ver por dentro. Chego à conclusão que tem relação com todas as neuras e dúvidas da existência. Olho sangue, carne, nervos e ossos agredindo o que resta de bom senso em mim, tal a complicação daquele emaranhado. Sou eu por dentro.

domingo, 29 de setembro de 2013

Na radiola

Domingo é dia de pescaria do nada além do que ouvir uma canção na radiola do tempo.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

meu eu brasileiro

De Paulo Leminski

   quisera poder pensar
como se faz no velho mundo
   eles me querem espelho
como se não tivesse mistério
   essa minha falta de assunto

Toni Tornado e Trio Ternura na BR 3


Tiros certeiros

Cuspi porque não havia outro jeito. Venci todos os medos e o fato de nunca ter brigado na vida. Cuspi com força e acertei bem entre os pés do fulano. No meio. Vi até uma poeirinha levantar, como se fosse numa cena em câmera lenta do Sam Peckinpah. Ohei nos olhos dele. Impassível. A frase todo mundo conhece, mas... vamos lá: quando este cuspe secar, eu vou te matar. Ele riu com a segurança que eu jamais tive. Ficamos ali parados. O sol estava forte. Começo da tarde. Ele deu um passo para trás. Não queria fazer sombra para aquela poça de cuspe. Então me preparei para o desfecho. Ou eu ou ele ia para a casa do chapéu, como a gente dizia. O mundo em volta não existia. Ouvi um latido de cachorro, mas era tão distante que parecia vindo de outro planeta. Secou! Ele puxou a arma. Eu puxei a minha, prateada, cabo vermelho. O gatilho mais rápido foi o meu. E a espoleta funcionou. A dele, não. Logo depois do estampido ele levou a mão ao peito e caiu. Andei devagar. Cheguei perto e disse: ganhei. Ele tirou o cinturão e me deu com a cartucheira vazia. Peguei o revolver preto de cabo branco da mão dele. Era da marca Estrela, como o meu. Olhei o lugar onde tinha cuspido. Tinha uma marca. Tiros certeiros, pensei.


quinta-feira, 26 de setembro de 2013

vivo ou morto

De Paulo Leminski

   pedaço de prazer
perdido
   num canto do quarto escuro
inferno paraíso
   vivo ou morto
te procuro

Dircinha Batista Entrei de Gaiato


Coelho

Sou um coelho. Gigante. Mas coelho. Meu nariz é frio e tem antenas. Ando pelas ruas de uma cidade grande qualquer. Não, não é Páscoa. Sou um coelho cujo calendário não é de chocolate e nem bolinho. Foi o que restou na minha vida. Me acostumei. Faço propaganda. Os meus pelos estão encardidos. Minha alma também. Outros entraram aqui dentro, mas desistiram. Estou fazendo isso há mais de ano. Sou um coelho velho e sem coelhinhas. Impotente. De tudo. Olho a paisagem por um pequeno buraco. Algumas crianças me adoram. Outras têm medo. Por causa do tamanho. Não sei se sou macho ou fêmea. Vai ver sou um coelho anjo. Hoje aconteceu uma coisa estranha. Vi outro coelho no calçadão. Eu indo, ele vindo. Paramos. Olhamo-nos. Buraco no buraco. Lá dentro tinha uma mulher. Eu fiquei com vontade de conhecê-la. Marcamos encontro. Fui lá no endereço que ela me deu. Nas quebradas. Casa simples. Limpinha. Ela sozinha. Eu sozinho. Rostos sofridos. De coelhos sobreviventes. Ela disse que tinha uma surpresa. Era um bolo. Comi um pedação. Delicioso. Bolo de cenoura.